Meia hora de Revolução

As antigas fábricas de lanifícios da Covilhã há muito que fecharam portas, mas continuam a existir testemunhos de quem por lá passou. Maria José Raposo foi uma das muitas mulheres que fez parte da força operária dessas fábricas. Depois de terem filhos as mães não tinham tempo para amamentar os bebés. Maria José reivindicou, junto ao patrão, para que lhe desse meia hora para poder dar de comer ao filho, abrindo as portas para que outras colegas pudessem fazer o mesmo.

No topo da faculdade de engenharias restam ainda os azulejos que dão conta de que ali esteve a Transformadora de Lãs, fábrica de fiação que laborou na Covilhã entre 1920 e o início da década de 90. Uma mulher segura a roca e sozinha, para todo o tempo, fia a lã, patrona agora de alunos e professores. Representa todas as mulheres que passaram pelos lanifícios. Podiam ser muitos os nomes que a identificam, mas hoje chama-se Maria José Raposo.

Há mais de meio século , durante o Estado Novo, a antiga fábrica foi palco de uma luta mais quieta, a das mães operárias. Nesse tempo os trabalhadores tinham  de lutar até pelos direitos mais básicos, não eram permitidos falatórios durante o trabalho ou idas  à casa de banho enquanto o relógio do trabalho contava. Em 1960, Maria José engravida, mas o trabalho não para. Não havia pausas para amamentar. Nem para ela, nem para nenhuma das outras mulheres.

É domingo, Domingo de Ramos em 2025, e Carlos Raposo vai visitar a mãe ao lar, à semelhança de tantos outros domingos. “Já não vinhas há tanto tempo”, protesta Maria José. “Ó mãe, só não vi a semana passada”. Desta vez, traz três filhoses, a laca para o cabelo (que não pode faltar porque Maria é uma mulher vaidosa), e está pronto para escutar as histórias da mãe, mesmo que, agora, seja ele a puxá-las dos entranhados da memória.

Maria José, não nasceu no bairro da Alegria, só sabe que lá apareceu. Tanto o pai como a mãe eram operários, mais uma das famílias que se instalavam no bairro próximo da Transformadora de Lãs e de outras empresas têxteis junto à ribeira da Goldra. Pela encosta abaixo surgiam as pequenas casas dos trabalhadores das fábricas. A maioria dos que compunham as ruas eram pessoas vindas do outro lado da montanha. Vinham das Cortes, da Bouça ou do Cabeço.

“Ó pai, como é que viviam aqui, nesta casa tão pequena, os avós e os tios?” Carlos fez questão de passar aos filhos as memórias que ouviu a mãe  contar a vida toda. “Ó filha, eram as casas dos trabalhadores. Ao lado, ainda tinham mais filhos e a casa era igual”. Lembra-se de também a filha ficar perplexa com os “quadrados” que representavam casa para tantas famílias. Eram tempos de dificuldade.

“Mas já não há nada?” questiona-se Maria José. A campainha vai ecoando pela conversa. São horas de visita e Maria e Carlos param para dizer “boa tarde” a todos. Há uns anos que a vila do Paul se tornou residência, mas casa, casa é a Covilhã. De facto, já não há nada. O bairro está a ser reconvertido, e Maria José olha para a distância que parece separá-la das memórias. Naqueles segundos vai a algum sítio longe de nós, longe do lar onde agora passa os dias. “Se for lá já não reconheço nada”, Maria retorna o olhar para o filho com um sorriso tímido de quem está pronta a reaprender.

O tear das memórias volta em força e Carlos começa a fazer a urdidura do passado para auxiliar a mãe na peça final. Aos 14 anos, Maria José já descia do bairro da Alegria para ir trabalhar na Transformadora de Lãs, não havia tempo para medos ou hesitações, e essa firmeza veio a refletir-se no seu futuro.

Aos 22 engravidou e, depois de nascido Carlos, nem sempre havia tempo para amamentar o bebé. Sair do trabalho estava fora de questão. Tinha apenas a meia-hora de almoço para abandonar os fios de lã, quando corria até casa. Mas que bebé se rege pelos horários de uma fábrica que não para? Carlos precisava da mãe e Maria José também reconhecia isso. Enquanto mãe, vindicou perante os Brancais, os patrões, tempo para que pudesse alimentar o filho. Foi a primeira a conseguir esse feito. Um feito sem precedentes numa luta feminina que até hoje se mantém – a das leis sobre a maternidade.

“Mas a minha avó é que ia comigo, não é?”, pergunta Carlos. A avó paterna carregava-o até à fábrica onde os patrões deixavam Maria José amamentar por meia-hora. Meia-hora de manhã, meia-hora de tarde. Reconhece que ao princípio os patrões ficaram chateados, mas que depois sabiam “que era preciso”. Carlos tem na memória uns patrões mais humanos, que chamavam  “Zézita” a Maria, que a viram de pequenina quando se juntou à fábrica. Apesar de tudo “havia uma ligação” entre o patrão e Maria.

As recordações surgem a Maria José por entre as palavras do filho, que vai repetindo, “foi assim que me contaste”, enquanto a mãe acena com a cabeça, “o meu filho já sabe mais que eu, mas eu contei-lhe tudo”.  Até que, por virtude dos “embaralhados de memória” e da conversa dos patrões, Maria insurge-se como se algo dentro dela gritasse – estas memórias ainda são minhas! “Mas fui eu que lhe arranjei a casa!”, referindo-se à barbearia de Carlos Raposo e pela aquela é conhecida .

Carlos, ri-se. “É verdade, foi ela que falou com o senhor Brancal”. Agora trocou de sítio, mas durante anos e anos quem descia a rua tinha como garantido ouvir os risos e as vozes vindas da barbearia do Raposo.  Percebe-se a fonte de tão boa disposição. “Tenho que te levar ao sítio novo”, promete Carlos, e Maria volta a ter um olhar distante de quem está a montar bloco por bloco cada travessa e esquina de uma Covilhã de memórias.

Maria José Raposo e o filho

“Raposinha, hoje está muito bem acompanhada!”, diz quem passa por Maria José . A alcunha é nova, os dias da revolucionária já vão distantes. Mesmo assim, a alcunha tende a ficar e agora é reconhecida por todos  no lar. É “a revolucionária”  por conseguir que as mulheres amamentassem no trabalho, pelo seu envolvimento na greve dos mil escudos  e pela firmeza que desde os 14 persiste em si.

As memórias vão esfriando, algumas ficam para trás, mas uma coisa tem certa – “sempre fui uma revolucionária”. O sorriso irrompe quando ouve falar dos nomes do passado, dos nomes que a acompanharam na Liga Operária Católica. De Luzia: “como é que ela está?” E do Padre Fernando: “ele sabia bem como eu era”.

Hoje já não se lembra de tudo. Maria José ainda vai tentando escrever num caderninho as lembranças dos seus dias de luta e, felizmente, algumas dessas vagueiam agora, modernamente, pela internet, como num estudo da investigadora Ana Catarina Pereira da UBI. Pode-se ler sobre as multas que lhe foram dadas, muitas vezes perdendo mais de metade do seu vencimento, se deixasse passar um fio grosso ou  por ir à casa de banho ou por falar com uma colega.

Carlos também se recorda do “medo”, mas não, necessariamente, o da mãe. Era o medo do pai. O medo de que fosse presa pelo seu envolvimento. Não chegou a acontecer, mas, mais tarde, confirmou-se. Existiam reuniões do sindicato a serem vigiadas pela PIDE. Depois dos tempos do Estado Novo, chegou a ser dirigente sindical e, ainda hoje, o filho guarda a homenagem que lhe foi atribuída pelo Sindicato dos Lanifícios pela sua participação na greve dos mil escudos, em maio de 1974, greve que mudou a conjuntura nacional através da criação de um salário mínimo. “Eu estive nessa”, sorri Maria José quando ouve o filho falar desse marco da Covilhã.

Carlos Raposo é agora um guardião do passado. Relembra a todos que a mãe lutava “pelas suas convicções, ideias e ideais” para que o mundo não se esqueça do que pessoas como Maria José fizeram durante os tempos em que a Covilhã vivia das mãos trabalhadoras dos operários têxteis. O orgulho que sente na mãe é mais que visível, é palpável em cada apertadela na mão da mãe, em cada ajeitar da franja arranjada, em cada “é normal mãe” ou “deixe lá mãe”, de cada vez que ela diz já não se conseguir recordar ou de cada vez que se recorda apenas das fragilidades impostas pelo tempo.

No topo da faculdade de engenharias restam ainda os azulejos que dão conta de que ali esteve a Transformadora de Lãs. Uma mulher segura a roca e sozinha, para todo o tempo, fia a lã. Sai poucas vezes do pedestal, mas ainda sai.

Carlos deixa à mãe umas moedas para os cafés da semana . “Esta semana não tiveram café. Estava a máquina avariada. Fizeram aí uma revolução”, riem-se uma das enfermeiras do lar e Raposo. “Eu disse que ela era chamada a revolucionária”. Maria José também sorri e por momentos está de volta às suas reivindicações.

 

Pode ler também