23Produtos 100% de lã são comercializados a altos preços no retalho, mas a cadeia de produção sofre uma crise de décadas em Portugal. A região da Beira Interior já foi conhecida como uma grande produtora de lã, com milhares de indústrias a tecer e a fiar a matéria prima recolhida localmente. Hoje, as poucas fábricas que restam possuem clientes atomizados, em sua maioria estrangeiros, que mantêm a rotatividade da produção, mas não são suficientes para absorver os estoques anuais de lã provenientes das tosquias.
A solução que pouco a pouco é construída por associações de produtores e lanifícios é a valorização da lã. O árduo caminho se inicia na genética dos rebanhos, segue pela profissionalização da tosquia, seleção dos novelos, lavagem das lãs, transformação, até chegar à comercialização de produtos com acabamentos finos que agregam valores sócio culturais e ecológicos. Essa matéria prima complexa depende de muitas etapas para adquirir valor e ainda enfrenta a competição das fibras sintéticas e de mercados externos experientes.
Indústrias locais da lã
Das indústrias de lanifícios que levaram a Covilhã à fama de próspera no romance de Ferreira de Castro, de 1947, restaram apenas duas. Ainda escondidas nas ribeiras da Estrela, já não mais na Covilhã, fazem de Manteigas a aldeia genuinamente da lã e da neve.
A Ecolã é uma das poucas indústrias que mantém o modo de produção artesanal na Serra da Estrela. Fonseca Costa, gestor comercial da empresa, define a relação entre o território e a marca como uma simbiose, ou seja, uma “associação recíproca de dois ou mais organismos diferentes que lhes permite viver com benefício”.
A dinâmica que move o quotidiano da antiga fábrica é ditada pelo “conceito de economia circular da riqueza local”, segundo Fonseca Costa. A produção têxtil artesanal em Manteigas acompanha todo o ciclo da lã, desde a tosquia até ao produto final e “utiliza ao máximo todos os recursos endógenos que existem na região”. O ADN da marca figura-se na lã de uma das dezasseis raças autóctones de ovelha em Portugal, a Bordaleira Serra da Estrela, e também se integram a essa identidade as figuras dos pastores locais, da mão de obra maioritariamente local, além da própria tipologia dos produtos que inclui capas e padrões de mantas utilizadas há mais de 200 anos na região.
“Neste momento, há apenas duas empresas neste formato, no passado já existiram muitas. Este projeto é de facto um bocado único, devido à antiguidade e sobretudo a estar focalizado numa certa tradição, num saber fazer local.” A linguagem da tradição é a tónica da indústria fundada em 1925, que existe desde os tempos dourados da lã na vila de Manteigas.
“No começo do Verão, antes de demandar os altos da serra, as ovelhas e carneiros deixavam em poder dos donos a sua capa de Inverno. Lavada por braços possantes, fiada depois, a lã subia, um dia, ao tear. E começava a tecelagem. O homem movia os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as duas mãos iam operando o milagre de transformar a grosseira matéria em forte tecido. Constituía o acto uma indústria doméstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a serra não dava, nessas recuadas eras, mais do que lã e centeio.” Ferreira de Castro, A Lã e a Neve
A lã como matéria prima
“Havia muita empresa familiar, nas próprias garagens tinham teares ou máquinas de costura, digo-lhe garantidamente, que eram milhares de famílias distribuídas à volta da Covilhã e chegavam até Belmonte.” João Serrano, engenheiro técnico da OVIBEIRA, associação de produtores agropecuários da Beira Baixa e um dos poucos classificadores de lã em Portugal, conta que “desde há vinte anos que o setor da lã tem vindo a cair de ano para ano”.
A introdução de materiais sintéticos na indústria têxtil substituiu a matéria prima de origem animal nas últimas décadas. Associado a esse factor, há a competição com outros mercados produtores de lãs com maior qualidade e menor preço, como nos países da América do Sul, no Médio Oriente, na Austrália e na Nova Zelândia. “Hoje há mercados que trabalham muito bem as lãs. Os uruguaios, os australianos, os argentinos, conseguem ir para as tais fibras. Trabalham os animais, deixam filhas das melhores produtoras de lã, das mais finas, compridas e com melhores rendimentos que são lavadas e de facto se tornam lãs muito valorizadas”, aponta João Serrano.
No final do século passado, “a lã tinha aqui um estatuto dourado”, diz Fonseca Costa. “Hoje, há exactamente o processo contrário. O leite tem a hegemonia, porque aqui o mercado é soberano e a lã é o último caso”. Para a maioria dos produtores, a lã representa um problema. O engenheiro da Ovibeira conta que “se houvesse alguma coisa que eles deitassem para fazer cair a lã da ovelha, os produtores até preferiam”.
O gestor comercial da Ecolã garante que a obtenção da lã com que trabalham é feita, sobretudo, localmente. “Há alguns pastores daqui que trazem a lã, porque já negociavam com as outras gerações da Ecolã. Mas há também a figura do ajuntador, como em Vila Nova de Tazem, no concelho de Gouveia, que reúne a lã dos pastores”. No entanto, Fonseca Costa alerta para o desaparecimento das lãs provenientes de raças autóctones, como a Bordaleira da Serra da Estrela que está ameaçada pelo cruzamento de raças. João Serrano explica que “devido à desvalorização da lã, o próprio produtor deixou de ter interesse” e opta por selecionar animais que produzam mais leite ou carne.
O antigo armazém de lãs em Castelo Branco guarda marcas do tempo em que a lã ainda valia alguma coisa. O letreiro apagado e as marcas no chão, onde se colocavam as amostras recolhidas na tosquia, demonstram a desvalorização desse mercado. O especialista em classificação de lãs recorda-se: “Há vinte e cinco anos atrás a lã tinha o seu valor. E alguns produtores orgulhavam-se em dizer que de facto as lãs eram boas. Muitos deles quando vinham aqui entregar as lãs diziam ‘as minhas lãs no ano passado foram das melhores que entraram aqui na concentração’”. Segundo João Serrano, as lãs extras no passado “andavam à ordem dos três euros por quilo”, enquanto nos dias atuais chegam a, no máximo, dois euros.
No pasto ao lado na Estrada Nacional, no Teixoso, há mais de cento e quarenta ovelhas sob a mira dum olhar atento. O homem de quarenta e seis anos observa a chuva a aproximar-se, enquanto conta que herdou as ovelhas bordaleiras de seu pai e com a ajuda do programa Jovem Agricultor conseguiu manter-se na profissão. Mas não é por causa da lã que Miguel Antunes tem as ovelhas. “Era 2010, na altura, se não conseguisse fazer o projecto não estava nessa vida. Arrisquei, meti a proposta, foi aprovada, deram-me ajudas e instalei-me. E lá fui indo, começando a ter o leite, com as ovelhas sempre a dar uns borreguitos… E cá ando.”
A vida do pastor não é por si só fácil, “não há feriados, nem dias santos”, conta Jorge Miguel Antunes. Ainda assim, veio a melhorar com as vedações de cercas elétricas, telemóveis e carros que já não prendem mais o pastor moderno às andanças diárias. No entanto, a queda na comercialização e os baixos preços não correspondem à memória das passadas gerações de pastores. “É assim, antigamente, o meu pai quando tinha as ovelhas… Ah, isso estamos a falar há quarenta anos atrás, que eu me lembre. Vendiam a arroba, na altura, a três contos, ou seja, eram quinze euros. Uma arroba são quinze quilos. Já nessa altura era um euro por quilo. Era muito bom! Há trinta e tal anos, um euro era bom. Hoje estão nos vinte cêntimos estas lãs.”
A lã tornou-se um problema sem solução, com o qual os pastores têm de lidar todos os anos. “Isto aqui com a lã está complicadíssimo. Este ano, essa que aqui tenho é para deitar para o lixo ou eu tenho que mandar vir para aqui uma máquina para enterrá-la”. Ainda que a prática seja um crime ambiental, o produtor de ovelhas encontra-se desafiado pelo destino da lã. Ter de tosquiar os animais todos os anos significa investir dinheiro no descarte, seja ao incinerar a lã, como exige a lei, ou a contratar máquinas para a enterrar, sob o risco de coimas elevadas.
As indústrias que produzem o burel a partir da lã de raças autóctones são o principal destino de comercialização. Miguel Antunes descreve a incerteza que acomete os muitos produtores de ovelhas que disputam a venda para as poucas fábricas que restaram. “No ano passado vendi só a minha lã, da bordaleira, para Manteigas, para o burel. Mas este ano não sei se a querem.”
A tosquia da lã
As tosquias começam entre abril e maio, durante todos os anos os pastores ocupam-se durante alguns dias com esta difícil tarefa. Jorge Miguel Vicente Antunes, pastor desde os 20 anos, conta-nos que “para tosquiar as ovelhas que aqui tenho, vêm o meu irmão e o meu pai. Pronto, são dois ou três homens que me ajudam. Eu, assim… estou agarrado à máquina. Eu tosquio uma ovelha, largo-a, tosquio outra, largo-a. Eles depois apanham a lã e trazem as ovelhas junto a mim. Leva um dia e meio, dois dias, depende.”
Grande parte das tosquias que são feitas no país acabam por não introduzir a lã no circuito comercial. Além da dificuldade de encontrar compradores que a leve por um preço mínimo, não há quem transforme a lã. A única fábrica que lava os velos na região está na Guarda e até mesmo os espanhóis recorrem a ela. Segundo o gestor comercial da Ecolã, “há um movimento em cadeia muito importante nos lanifícios, que envolve lavar, selecionar, fiar e tecer a lã. E como há cada vez menos transformadores, a lã acaba por ser queimada”.
Nos quase dez anos em que esteve parado o sector das lãs da associação de Castelo Branco, houve o crescimento de um monopólio de tosquiadores na região que se mostrou prejudicial aos produtores e ao mercado. “Todo o sector das lãs da Ovibeira esteve parado entre oito e dez anos. No regresso da recepção das lãs em 2021, nós vimos o mau estado em que chegaram até à concentração das lãs.” Devido ao relato das dificuldades dos produtores nesse ano, “eram defeituosas ou não conseguiam tosquiadores a tempo e horas, alguns eram mal formados e não se conseguiam facturas do serviço, havia uma série de defeitos”, por isso a Ovibeira reorganizou a campanha de tosquias em 2022, relata João Serrano.
Com a falta de mão de obra qualificada na região, a associação começou a contratar tosquiadores uruguaios. “Nós viramos-nos para a contratação de uma equipa de tosquiadores profissionais que frequentam uma escola no Uruguai para aprender a tosquiar. E, de facto, no primeiro ano da campanha das lãs não estávamos à espera de tosquiar tantos animais. Chegaram a cerca de trinta e quatro mil. Foi um sucesso”.
Gil Vicente, assessor de direção da associação, acrescenta que as equipas uruguaias se distinguem dos tosquiadores portugueses. “Estas equipas não necessitam de ninguém para apanhar as ovelhas e ensacar a lã. O produtor não tem que se preocupar com nada, nem com alimentação, é o que a gente costuma dizer ‘com chave na mão’”.
Os estrangeiros vindos do Uruguai são contratados pela associação por meio de uma empresa espanhola. Os produtores, independentemente de serem associados, precisam apenas de realizar a inscrição na Ovibeira para serem contactados para a tosquia com uma semana de antecedência, minimizando a dificuldade com a mão de obra e garantindo a facturação tributária do serviço.
Para o segundo ano, em 2023, a associação prevê a tosquia de cerca de cinquenta mil animais, que vão gerar à volta de cem mil quilos de lã. A campanha começa em abril e termina no dia 18 de junho.
João Serrano destaca a importância da organização das tosquias para o aumento da qualidade e do preço da matéria prima, “toda lã tosquiada connosco é separada por categoria”. A tosquia é seguida da triagem da lã, quando se diferenciam os novelos pelas diferentes raças e idade dos animais, pelas diferentes partes do novelo e pela coloração. O classificador de lãs separa ainda as partes mais finas e as mais grosseiras, menos ou mais nobres dos novelos. Essa diferenciação permite a comercialização da matéria prima em valores mais baixos ou mais altosm, consoantes a qualidade detectada em cada novelo. No entanto, a lã que não é tosquiada pela associação não passa pela etapa de classificação e acaba por ser vendida em um lote à parte ao preço mais baixo, adianta João Serrano.
Com o recente projecto da campanha de tosquias, a Ovibeira tem a expectativa de, pouco a pouco, recuperar o valor de mercado da lã, para além de sanar o problema dos associados com a mão de obra. Porém, se for possível, ao menos, pagar pelos custos da tosquia e esta deixar de ser sinónimo de prejuízo aos produtores, todo o trabalho de organização de equipas, recolha e seleção das lãs acaba por compensar, segundo o assessor de direção.
Burel
Tecido 100% lã de ovelha de origem medieval, desde sempre associado à Serra da Estrela, à montanha, aos pastores e às suas capas. A autenticidade do Burel resulta de uma sequência de operações específicas no processo de fabrico. A lã, após ter sido tosquiada, lavada, fiada, urdida no órgão e tecida no tear, é pisada numa máquina designada por pisão, que bate e escalda a lã transformando o tecido (enxerga) em burel, tornando-o mais apertado, resistente e impermeável.
O burel era um tecido utilizado por pastores e pelo baixo clero, considerado um tecido grosseiro e de segunda escolha, devido ao característico picor.
Segundo o gestor comercial da Ecolã, “hoje esse paradigma mudou”. O burel torna-se um produto de luxo com a descoberta da aptidão do tecido para aplicações em soluções acústicas, na fabricação de sapatos, ou na produção de estofos para móveis.
Produtos 100% lã são artigos de luxo
Das curvas da estrada de Manteigas saem as finas peças de lã natural tecidas artesanalmente para alcançar a A1 e abastecer as lojas da Ecolã em endereços conhecidos por muitos turistas e portugueses. Há dez anos que o burel, as mantas e as capas dos pastores ocupam as montras em frente à Praça Príncipe Real, entre as mansões do século XIX de Lisboa, e na rua Mouzinho da Silveira, entre a estação São Bento e a Ribeira do Porto.
Mas é a exportação que garante a sobrevivência da indústria, representando mais de 50% dos rendimentos da Ecolã, revela Fonseca Costa. “A exportação assume cada vez mais destaque desde 1995, quando se lançou no mercado dinamarquês pelo neto do fundador, João Clara”. Depois de chegar à Dinamarca, os produtos de lã ganharam terreno na Alemanha e no Japão, países que constituem hoje os principais compradores.
A lã portuguesa vai para o exterior através das coleções anuais da Ecolã, mas também sob a forma de tecidos feitos sob encomenda. O destino é sempre muito diversificado, garante Costa, “a Ecolã tem uma estrutura de clientes muito atomizada”. Alguns concentram-se nos produtos têxtil-lar, outros na confecção, outros nos acessórios, como cachecóis e mantas. Mas há também mercados, como o francês, amante da cultura de montanha, que acresce especial valor aos produtos que carregam características típicas da região.
O mercado em Portugal é pequeno, mas também não é tão habituado à lã como na Alemanha. Segundo Fonseca Costa, “os mercados internacionais são fundamentais para conferir dignidade ao tecido 100% lã”. A maior economia europeia hoje está muito receptiva aos produtos manteiguenses, seja pelo conhecimento que estes compradores possuem da lã, seja pela consciência da sustentabilidade e do caráter ecológico destes produtos, assume o gestor comercial.
“Hoje, por exemplo, na Alemanha, a lã é um produto de luxo. Portanto deu-se dignidade a este processo de valorização das lãs, o que é muito importante. Claro que estamos longe do que gostaríamos de atingir. No entanto, os produtos acabam por ter um posicionamento bastante interessante, daí termos bastante trabalho e encomendas.”
O modo de fazer local e a matéria prima natural contrariam o ritmo acelerado da indústria da moda no século XXI. Movimentos como o slow fashion e a moda consciente resgatam os valores socioambientais dos produtos, propondo maior diversidade e menor dimensão nas produções, além de mudanças de comportamento a partir do conhecimento sobre a origem e o modo de produção destes produtos. Segundo a Fundação Ellen MacArthur, uma das instituições líderes no desenvolvimento e promoção da economia circular, é necessário uma “transição para um sistema têxtil que ofereça melhores resultados económicos, sociais e ambientais” para refrear o fenómeno fast fashion, que produz roupas cada vez mais descartáveis e a um ritmo cada vez mais acelerado.
A Ecolã acredita na tendência de crescimento do mercado sustentável, mas compreende a existência concomitante dos dois modos de produção. Para Fonseca Costa, “estas matérias primas artificiais das fibras têxteis sempre existirão e é bom que existam, para já, para democratizar o consumo. Agora a questão é: há que se valorizar corretamente todo o processo de produção natural e consciente”.
Segundo o gestor comercial, que acompanha o mercado dos lanifícios há vinte e dois anos, a entrada no segmento de luxo foi importante para valorizar a cadeia de produção, mas não é esse o objetivo. “Não é trabalhar produtos de elite, não é isso que se procura, mas é de facto dar o posicionamento correto e a dignidade que esses produtos merecem. Isso é muito importante e também é uma missão da empresa”. Segundo ele, há uma alteração em curso na atitude do consumidor, que busca por mais conhecimento no momento da compra. “Nós aqui não vendemos apenas mantas, vendemos todo o processo que há por trás do produto. O que é a lã, como foi transformada… Claro que isto é para nichos ainda, mas eu penso que é um nicho que se vai amplificando.”