A Serra (ainda) dá Estrela(s)

A Serra da Estrela é o ponto mais alto de Portugal Continental e é, por isso, um dos locais mais frequentados por atletas nacionais que procuram a altitude como um fator de evolução do rendimento desportivo. Eduardo Mourato não regressou por esse motivo, mas não nega a sua importância e “agradece” que assim seja. Deixou a capital, onde era apenas “mais um”, para se fixar em Gouveia, onde é o número um nos desportos de resistência.

Homem dos três ofícios

Eduardo Mourato tem 37 anos, é natural de Seia, e é uma daquelas pessoas que nasceu para o desporto. É triatleta e treinador de modalidades de endurance.

Como muitas crianças, deu os primeiros passos – ou braçadas – na natação, modalidade em que foi federado até aos 13 anos. Na altura, a piscina de Seia tinha uma distância de apenas 16 metros, o que não dava a margem de evolução que Eduardo procurava, “obrigando” o pai a levá-lo para Viseu todos os dias para treinar, numa viagem que totalizava a cerca de hora e meia entre ida e volta.

Ao fim de alguns anos, o custo da rotina tornou-se caro, sobretudo a nível mental, levando à substituição da piscina pelo relvado e a bola. Durante um ano e meio praticou futebol na terra natal, mas a verdade é que nunca se identificou com desportos coletivos e os corta-matos escolares deram-lhe a conhecer uma nova modalidade. Sem treino ou experiência, sempre se deu bem nas corridas da escola, e os colegas que pertenciam ao clube de atletismo da cidade, conseguiram convencer Eduardo a praticar a terceira modalidade diferente na adolescência.

Mais um ano e meio e finalmente, aos 16 anos, aparece o triatlo – muito com a ajuda do Tour de France. “O gosto pela prova francesa abriu o bichinho do ciclismo”, conta. Com vários anos de treino de natação, mais os quase dois anos de atletismo, Eduardo pensou: “Porque não juntar o útil ao agradável e praticar as três modalidades?”. Neste mesmo ano trabalhou durante o verão numa esplanada, e no final conseguiu comprar duas bicicletas – uma de BTT e outra de estrada.

Mourato, como é tratado pelos amigos, começou a participar em provas locais e mais tarde foi convidado para integrar algumas equipas. Com 18 anos, nesta altura atleta de triatlo num clube da Maia, foi convocado pela primeira vez para representar a seleção nacional, mas não correu como esperado. Dois dias antes da prova foi atropelado e o trabalho que estava a ser desenvolvido ficou suspenso.

 

 

Só uns anos mais tarde regressou ao triatlo. Com 28 anos o interesse pela prova IRONMAN – 3,8 km de natação, 180 km ciclismo e 42 km de corrida – desbloqueou um novo objetivo na vida de Eduardo. Ao contrário da maioria dos desportos, o “pico de performance” de um triatleta é atingido a partir dos 30 anos, e o regresso aos treinos “sérios” correu melhor do que o esperado. O “um dia gostava de terminar um IRONMAN” transformou-se em “se calhar isto pode dar para mais”. Hoje, com 37 anos, já completou mais de dez.

Desde o regresso, já foi quatro vezes campeão nacional pelo Estoril Praia, e não esconde o orgulho de ter contribuído diretamente em duas ocasiões. O senense também já representou Portugal no Europeu Bilbao Bizkaia em 2022, bem como no Mundial de 2023, em Ibiza, mas o grande marco da sua carreira até ao momento está no ano de 2024, quando conseguiu marcar presença no World Championiship Ironman, no Hawai, EUA.

No paraíso

Não é difícil encontrar Eduardo Mourato. Facilmente o podemos ver a correr ou pedalar nas ruas de Gouveia. É natural de Seia, mas foi no concelho vizinho que escolheu morar.

Fez a licenciatura em Educação Física e Desporto em Lisboa, e por lá trabalhou durante oito anos. Na altura da pandemia, a capital tornou-se um sítio impossível para treinar e decidiu ir viver para Gouveia durante um mês.

“Quando pensei em voltar para a confusão de Lisboa, voltar a viver para trabalhar e não conseguir ter rendimentos para uma boa vida, tive uma série de conversas onde me disseram que cá podia marcar pela diferença”, conta.

O regresso à Serra foi inevitável e a vida de Eduardo mudou por completo. No início notou os olhares de lado dos gouveenses. O desconhecimento sobre o seu trabalho levantava várias questões: porque estava sempre a correr ou a andar de bicicleta? Mas hoje, passado cinco anos, a história é outra, e já se sente acolhido pela comunidade.

Quanto às transformações, “a alimentação passou a ser mais saudável, os benefícios do treino em altitude e os baixos níveis de poluição fazem-se sentir no rendimento e a nível económico os números não têm comparação”, enumera.  Apesar de todos estes fatores, o mais decisivo para o triatleta escolher Gouveia foi Ana, que conheceu durante a sua estadia na altura da pandemia. Foram pais recentemente e Mourato não esconde o sorriso ao falar da filha de cerca de um ano.

Agora, não tem companhia durante a maior parte dos treinos, e é, provavelmente, o atleta que mais quilómetros percorre nas deslocações para provas, mas nem por isso a ideia de deixar de Gouveia é uma opção. “Vivo num paraíso que as pessoas não sabem valorizar”, afirma.

“Paraíso” é também a palavra utilizada por Guilherme Duarte, ciclista de 19 anos, para descrever a Serra da Estrela, explicando que “existem subidas, descidas e algum plano, o que dá grande diversidade a qualquer tipo de treino”. Em relação aos desafios o jovem considera que existem vários, “mas treinar na Serra deixa qualquer dificuldade muito mais fácil devido às paisagens de que desfruto durante o treino”.

Tiago Aragão, fisiologista e treinador de desportos endurance explica que treino em altitude, pelo tipo de adaptação que provoca, beneficia as modalidades desportivas individuais de resistência, como o ciclismo ou o triatlo.

“A pressão parcial de oxigénio é menor, o que reduz a quantidade de O2 disponível para ser captado a nível pulmonar. Situação que, ao nível do mar está facilitada. Para contrariar, verifica-se um aumento da frequência cardíaca, por forma a conseguir suprimir o défice de O2 disponível para os tecidos. Em resposta a esta condição, o corpo aumenta a produção de eritropoietina (EPO), estimulando a produção de glóbulos vermelhos que são os responsáveis pelo transporte de O2 até aos músculos ativos”.

Assim, o treino em altitude, em maior medida acima dos 2000 metros, como explica o fisiologista, provoca alterações fisiológicas que aumentam a capacidade de transporte de oxigénio (aumento da hemoglobina), melhorando consideravelmente a resistência e, consequentemente, o rendimento desportivo

 

Conceito vencedor

Mas nem só do seu rendimento enquanto atleta vive “Mourato”. Há onze anos, cometeu a «loucura» de largar o trabalho como treinador de futebol, pois mais uma vez não se identificou com a modalidade, e começou a dar treinos de ciclismo numa arrecadação de uma loja em Sintra. O projeto Athletic Cycling Fitness Center demorou a “arrancar” e. durante o primeiro ano teve apenas três atletas, número que cresceu depois de aparecerem os resultados.

Os primeiros campeões nacionais das diversas modalidades do ciclismo apareceram mais tarde, com o projeto conjunto Alpha Cycling Center, e foi nesta altura que deu a “explosão” enquanto treinador.

Uns anos mais tarde voltou a trabalhar a solo. Surgiu então o EM-Concept, que teve a sua primeira casa em Massamá, e nos últimos anos se fixou em Gouveia, sendo que já não está focado apenas no ciclismo. Este ano, Eduardo criou a equipa Concept Triatlo, projeto ainda em fase de desenvolvimento e interligado com o EM-Concept, mas onde a mentalidade deixa de ser a de “treinador individual” e passa a ser como um coletivo.

Atualmente, trabalha essencialmente com a formação e nota os benefícios do crescimento em altitude, considerando mesmo que “se houvesse mais projetos a desenvolverem-se nesta região saíam daqui grandes talentos”. No entanto, Eduardo não fecha a porta do estúdio a ninguém. Tem reformados que procuram manter a atividade física, e outros que, para a alegria do treinador, com o entusiasmo dos treinos voltam a demonstrar interesse pela competição.

 

 

Mais de uma década depois, diz a base de dados de Eduardo que já lhe passaram pelas mãos quase 500 atletas. Nem ele tinha noção

Mais do que um treinador

Hoje a experiência conta, e “ajuda a ter a capacidade de normalizar tudo”, considera Eduardo. Quando inicia o trabalho com um atleta novo, seja sedentário ou atleta de alto rendimento, o treinador entende – afinal passou por ambas as fases na vida. Mas os jovens, como o grupo etário que mais procura a EM-Concept, acabam por ter outras dificuldades e, neste caso, ao papel de treinador é adicionado um outro igualmente importante para o desenvolvimento dos jovens atletas: amigo.

Guilherme Duarte é um dos jovens treinados por Eduardo. Natural de Gouveia, começou no ciclismo com 13 anos, e logo se envolveu no projeto EM-Concept, onde destaca que cresceu não só em cima da bicicleta, mas também fora dela. “O projeto EM-Concept e o Eduardo Mourato são sem dúvida uma mais-valia para a minha vida enquanto atleta por todo o trabalho feito nos últimos seis anos, mas também é um dos responsáveis por ser a pessoa que hoje”, afirma o jovem de 19 anos.

Primeiro na vertente de MTB e mais tarde também na estrada, Guilherme desde cedo mostrou bons resultados, com várias conquistas nas duas vertentes, tanto a nível regional como nacional, sendo um dos atletas com mais destaque treinados por Eduardo.

Outra atleta do projeto EM-Concept que tem demonstrado grandes capacidades é Maria Coimbra, que apesar de ter apenas 17 anos é uma das pré-selecionadas para os Jogos Olímpicos de 2028. Começou com 8 anos no Triatlo, mas com o passar dos anos, influenciada pelo pai, começou a levar o ciclismo mais a sério, tendo já sido campeã nacional de pista por duas ocasiões e uma de contra-relógio, sempre com Eduardo como treinador.

“O meu treinador é uma grande mais-valia para o meu desenvolvimento, tanto como atleta como pessoa. Dá-me conselhos no desporto e motiva-me nos momentos difíceis.”

Ambos os adolescentes ainda estudam. Guilherme frequenta o primeiro ano da licenciatura em fisioterapia e a Maria ainda está no secundário, o que aliado ao facto de, por vezes, não terem condições de treino igualitárias aos colegas, se torna numa dificuldade que o treinador tenta auxiliar os jovens a ultrapassar, sobretudo a nível mental.

 

 

“Viver o processo”

Mas nem tudo é fácil. As horas que Eduardo dedica ao desporto traduzem-se em tempo que não passa com a família, exigindo uma organização diária constante, e mesmo assim, por vezes, não é possível encaixar tudo em 24 horas. “Agora com uma filha nem tudo corre bem. A meio do dia posso receber uma mensagem da creche a dizer que ela não se sente bem e tenho de a ir buscar, o que acaba por comprometer alguns treinos”, conta.

 

É neste contexto que cada vez mais atletas de alto rendimento recorrem aos serviços de psicologia desportiva, sendo atualmente considerado quase como um treino extra. Ninguém coloca em causa a importância da condição física na carreira de um desportista, contudo são muitas vezes os fatores psicológicos que acabam por ser decisivos num resultado ou, indo mais longe, num percurso de sucesso. Uma investigação da SIC levada a cabo em 2021, com dois futebolistas profissionais, destacou quatro fatores como fundamentais na construção de uma mentalidade forte num atleta.

“A minha psicóloga ajuda-me a gerir as expectativas porque isto acaba por ser um peso muito grande em cima dos ombros de um atleta, treinador, pai e namorado”

O custo elevado de um desporto como o triatlo é também uma das grandes dificuldades para vários atletas. No caso de Eduardo, o Estoril-Praia enquanto equipa, garante nas provas em território nacional alojamento e inscrição, valor que ao longo dos anos tem subido drasticamente. Contudo, os patrocínios são mesmo o que tornam o trabalho possível. Seja em valor monetário – que acontece maioritariamente em provas internacionais – ou em material desportivo – por troca de conteúdos nas redes sociais por exemplo – as marcas são normalmente o que permite um triatleta “diminuir o orçamento”, conta Eduardo, acrescentando que “nada do que recebo em troca de patrocínios é para lucrar. É uma forma de reduzir ao máximo o investimento para poder praticar a modalidade”.

 

Este foi um fator que quase colocou em causa o sonho de Eduardo Mourato de participar no Campeonato do Mundo de IROMAN que se disputa na ilha do Hawai. Em 2022, na prova de Cascais, foi sétimo do escalão, e com isso garantiu a slot para participar na prova em solo americano. Após esse feito, era necessário novamente uma série de gastos, o que com a habitual ajuda dos patrocínios seria um valor suportável, mas “aconteceu o melhor imprevisto do mundo” – o nascimento da pequena Maria Francisca em novembro de 2023 –, o que alterou por completo o ano competitivo de 2024, deixando a incógnita de se seria possível participar no Campeonato do Mundo.

 

 

Passado uns meses, quando a rotina estabilizou, Eduardo voltou aos treinos com foco no Hawai, mas os apoios que conseguiu mostraram-se insuficientes para cobrir despesas de deslocação, estadia e alimentação – já tinha pago a inscrição de 1700 euros. No entanto, o triatleta não desistiu do sonho e conseguiu angariar mais de 3200 euros em doações de familiares, amigos, conhecidos, ou até mesmo de pessoas que se mostraram sensibilizadas com a história do senense, que conseguiu assim “realizar o sonho de uma vida”, descreve.

A “Kika” ainda é pequena, mas o pai já lhe lançou a mensagem que espera que leve para a vida: “Se achares que mereço ser um exemplo para ti, então lembra-te de lutares sempre pelos teus sonhos, mesmo quando as probabilidades de os conseguires alcançar se tornem distantes, foi essa mensagem que passaste ao teu pai no teu primeiro ano de vida!”

Apesar de muitas vezes esquecida, a Serra da Estrela revela-se um local crucial no panorama dos desportos de resistência em Portugal. Com uma altitude modesta de 2000 metros, se comparada a outros locais mais mediáticos ao redor do mundo, a verdade é que as suas especificidades geográficas e climatéricas proporcionam condições particularmente desafiadoras.

Com um nível acima da média no que toca a condições respiratórias – pelo menos em Portugal – Eduardo Mourato personifica a ideia de que, com a visão certa, “com pouco é possível fazer muito” e acredita no potencial do interior como poucos. Treina diariamente onde outros passeiam, transformando-se num “embaixador” de uma Serra que aos poucos vai ganhando lugar no mapa do desporto nacional. O ciclismo destaca-se com a etapa rainha da Volta a Portugal a terminar na Torre, ou o Grande Prémio das Beiras e Serra da Estrela

Com uma carreira marcada por altos e baixos, a história de Eduardo mostra que, por vezes, os campeões nem sempre se fazem em centros de alto rendimento, mas nos locais onde ninguém espera.

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