Da Covilhã a Tânger: o TeatrUBI leva o teatro português ao coração de Marrocos

Faz vinte anos que uma cidade marroquina, no estreito de Gibraltar, se consolidou como palco de um encontro anual pouco conhecido fora dos círculos académicos, mas de dimensões e importância verdadeiramente globais.

Tânger acolhe o FITUT – Festival International du Théâtre Universitaire, um certame em que estudantes de dezenas de países convergem para partilhar criações teatrais, debater arte e estabelecer pontes entre culturas. Em novembro de 2025, o TeatrUBI, da Universidade da Beira Interior, marcou presença com “Ficções do Interlúdio”, num encontro que ressaltou as tensões criativas e diferenças fundamentais entre as tradições teatrais do mundo.

O festival, realizado anualmente desde 2005 sob o Alto Patronado de Sua Majestade o Rei Mohammed VI, transformou-se numa plataforma genuinamente global para o teatro universitário. O que o distingue é a sua composição: o FITUT é organizado por um comité 100% composto por estudantes, jovens com idades entre 18 e 25 anos que gerem todo o processo desde a seleção de grupos até à organização técnica e logística.

Além das apresentações competitivas, o festival convida profissionais de outros países para dirigirem workshops, apresentarem espetáculos e dinamizarem mesas-redondas, funcionando, verdadeiramente, como uma escola intensiva de

teatro durante uma semana. A 18.ª edição reuniu representantes de Portugal, Espanha, Egito, Lituânia, Itália, Montenegro, Polónia e vários outros países, consolidando Tânger como um centro incontornável do teatro universitário internacional.

O regresso a Marrocos

“O TeatrUBI participa em muitos festivais internacionais ao longo dos seus mais de 30 anos de existência”, começa por contextualizar Rui Pires, diretor do grupo. A ligação a Marrocos vem de longe.

Tânger surge como o terceiro ato de uma relação que se estende por duas décadas.

O convite chegou através de um open call do festival. Mas se a candidatura foi simples, o custeio revelou-se bem mais complexo. “Para irmos a Marrocos, cada elemento do grupo pagou o seu bilhete”, explica Rui Pires.

O TeatrUBI recebe convites regulares para participar de festivais em várias partes do mundo, mas as limitações financeiras forçam escolhas estratégicas. Apesar disso, o currículo internacional é impressionante: “Já participamos em festivais em muitos países do mundo, Espanha, França, Itália, Turquia, Brasil, Venezuela, Costa Rica, muitos países.” O grupo aproxima-se dos 37 anos de existência, sustentado não por subsídios, mas pela dedicação consistente de sucessivas gerações de estudantes.

Um choque de linguagens teatrais

O espetáculo que levaram a Tânger revela-se como um contraste violento face às tradições locais. “Apresentar um espetáculo de cariz contemporâneo, como é o nosso, num país muçulmano, é completamente diferente de apresentar na Europa”, sublinha Rui Pires. “Ficções do Interlúdio” é teatro pós-dramático, uma abordagem onde o corpo e a expressão ganham primazia sobre o texto, onde a multiplicidade de interpretações é não apenas permitida como celebrada.

O festival funcionou como um mapa vivo das geografias teatrais mundiais.

Constança Tomé, atriz e estudante de medicina do grupo, oferece uma leitura pedagógica destas diferenças. “Países como o Egito ou a Itália, ainda optam por teatro muito clássico. Enquanto que, na Lituânia, na Polónia, eles fazem estilos de teatro já mais próximos com o nosso.” Mas para a audiência marroquina, não havia proximidade possível. “Tanto para nós como para os diferentes países, foi um choque cultural, em termos de estilo de teatro, estilo de arte. O que nós fazemos é uma realidade para eles totalmente nova.”

Rui Pires assinala um detalhe significativo: “Nós estávamos em representação de Portugal, não oficial, porque não temos nenhum mandato para representar Portugal, mas de qualquer forma, éramos a única companhia portuguesa que ali estávamos.” Uma presença simultaneamente modesta e simbólica!

Constança: o teatro como descoberta

Constança chegou ao TeatrUBI há pouco mais de um ano, completamente desprovida de experiência anterior em teatro.

O preço dessa paixão é elevado. Medicina é exigente e o teatro demanda dedicação igualmente intensa. Mas, descobriu uma dinâmica paradoxal: a estrutura teatral funciona como catalisador para a

produtividade académica.

 

O festival marroquino trouxe reconhecimento inesperado. Constança recebeu uma menção honrosa como atriz. “Eles chamaram-me ao palco, disseram o meu nome e eu não tinha percebido. Foram os meus colegas que me disseram. Fiquei super orgulhosa, obviamente, é um orgulho para mim e para o teatro também.”

 

 

O significado indizível

Sobre o que “Ficções do Interlúdio” significa, Constança recusa explicações diretas.

 

Um laboratório além das aulas

Para Rui Pires, a relevância do TeatrUBI ultrapassa a produção de espetáculos. “O ensino superior é mais do que aulas e saídas à noite. As atividades extracurriculares potenciam outro tipo de formação e de experiência que a universidade em si não proporciona.”

O modelo operacional do grupo funciona através de ciclos bem definidos. Novembro é um mês de abertura, com ensaios abertos três dias por semana. “Os alunos podem vir e faltar e voltar a vir. A partir de dezembro, quem fica tem o compromisso de ficar até ao próximo ano.” O calendário é ambicioso e regular: preparação a partir de outubro, estreia em março, e circulação contínua até à preparação da próxima criação. “É uma dedicação, não diria a tempo inteiro, mas para quem não estuda teatro, é uma dedicação ainda considerável.”

O que fica após Tânger

Constança tem clareza sobre o que realmente importou. “Acho que o mais importante não é o prémio. Acho que é mostrar mesmo e demonstrar aquilo, a arte que estamos a fazer e que criamos ao longo de todos esses ensaios e todo este tempo.” O reconhecimento veio, mas a experiência transcende troféus e menções.

Constança resume o impacto geral de forma que encapsula a função profunda do teatro universitário internacional: “Isto é excelente para o TeatrUBI, porque tanto podemos mostrar a nossa arte, mas também dar meio que a ensinar às pessoas uma forma diferente de ver a arte e de ver a vida. As coisas não têm que passar mensagens, às vezes têm é de criar uma discussão artística entre vários grupos, entre várias pessoas e entre vários estilos de arte.”

O TeatrUBI volta a Covilhã já a preparar a próxima criação, que estreará em março de 2026. Mas em Tânger, ficou algo mais do que um espetáculo: ficou o testemunho de que o teatro português universitário não apenas existe, mas desafia e transforma o próprio conceito do que é fazer arte num mundo cada vez mais fragmentado.

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