“Incels” e não só: A procura de uma resposta externa a problemas interiores

Tomás Quaresma. Foto da autoria de João Ramos.
Tomás Quaresma. Foto da autoria de João Ramos.

Amy Carlson, mais conhecida por “Deus Mãe”, foi a líder espiritual do culto digital norte-americano Love Has Won. Uma firme negacionista da medicina moderna, a consequência da ideologia que pregava foi a sua própria morte em 2021, devido a uma mistura de alcoolismo, anorexia e consumo excessivo de prata coloidal; este último ingrediente que Amy acreditava protegê-la do vírus Covid-19.

Os seus seguidores, que, pouco antes de morrer, recusaram levá-la a um hospital, envolveram o corpo com lençóis, um saco de cama, luzes de natal e utilizaram óleos essenciais para mascarar o cheiro a decomposição. Cruzaram várias linhas estatais para, finalmente, repousarem o cadáver dentro de um quarto transformado num santuário, onde o mantiveram como um objeto de adoração durante um período de tempo não conclusivo.

Acreditavam que Amy tinha “ascendido” depois de conter dentro de si todas as dores da humanidade e esperavam pelos “seres galácticos” que a vinham buscar. Quando os polícias encontraram o corpo, ele estava mumificado.

Mother has rested- she has rested” (“A mãe descansou- ela descansou”), disse calmamente o “Pai Deus” Jason Castillo aos polícias que bateram à porta da propriedade do culto, na pequena cidade de Crestone, no estado do Colorado. Até depois da morte, Amy ainda exercia controlo sobre o “seu” grupo, que permaneceram crentes mesmo perante a evidência final de que a ideologia que seguiam era errónea.

Pessoas partidas e sem rumo muitas vezes procuram respostas perto de “falsos-profetas”, líderes carismáticos que normalmente são classificados com um distúrbio de personalidade, como o narcisismo, no caso de Amy. Obviamente que muitos destes seguidores não são pessoas mentalmente saudáveis e estão mais propícias a entrarem em dinâmicas interpessoais abusivas, como por exemplo, aqueles que desenvolveram problemas de codepedência devido a uma infância abusiva. No entanto, não deixa de ser triste venerarem Amy ao ponto de dormirem com um cadáver mumificado.

O profissional de saúde mental Steven Hassan desenvolveu o modelo B.I.T.E para medir o domínio autoritário dentro de grupos de alto controlo (leia-se “cultos”, numa linguagem coloquial). Contudo, se aplicarmos estes modelos a alguns movimentos como os MAGA de Donald Trump, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães de Adolf Hitler, ou até mesmo a alguns grupos disfuncionais de “amigos” e relações amorosas abusivas, não se admirem se assinalarem algumas caixas nos medidores do modelo B.I.T.E.

Ultimamente, ao longo das passadas duas semanas,  temos sido confrontados com notícias sobre o movimento “Incel” em Portugal. Grupos de jovens com uma autoestima terrível, que encontram dificuldades em encontrar um parceiro sexual ou romântico, reúnem-se à volta de “gurus”, como Andrew Tate, ou o treinador de namoro conhecido por Alpha Dom, que lhes ensinam que o problema não está neles, mas sim nas mulheres que têm padrões demasiado elevados, o que os leva a adotarem ideologias e atitudes misóginas. A miséria adora companhia e estes jovens, ao reunirem-se nestes grupos, reforçam ainda mais estes comportamentos entre si.

Acredito que estes grupos não diferem muito de cultos, que, muitas vezes, como é o caso do Love Has Won , não passam de esquemas para sugar dinheiro às pessoas através da mentira, manipulação e, até mesmo a violência. Estes gurus carismáticos, tal como Amy, vendem uma certa ideologia a jovens perdidos ou desiludidos com a vida através de cursos e outros esquemas.

No caso dos “Incels”, apenas substituam o “Concelho Intergaláctico”, ou as “vibrações interdimensionais”, por termos como “redpill”, “bluepill” e “blackpill” . Estes três vocábulos são utilizados para se referirem, respetivamente, a homens que “acordaram” para a “verdade” de que estão à mercê dos desejos e poder das mulheres; homens que não “acordaram” para esta “verdade; e homens que aceitam a sua condição como subordinados às mulheres a nível económico, social e sexual.

Tudo indica que podemos encontrar alguns padrões partilhados, quer seja num movimento tão vasto como o nazismo; em cultos como o “Love Has Won”; nos grupos de “incels” ou nas unidades familiares abusivas. Por exemplo, todos se reúnem em volta de figuras quase “mitológicas”, como Adolf Hitler, Amy Carlson, Andrew Tate ou um pai psicologicamente abusivo; e todos têm um inimigo em comum, quer seja, respetivamente, os judeus/eslavos, os não crentes, as mulheres ou o familiar utilizado como bode expiatório. No entanto, se existe um elo principal, acima de todos os outros, comum a estes exemplos, é o facto de estas figuras se aproveitarem e instrumentalizarem pessoas vulneráveis.

Quaisquer que sejam os problemas destes jovens, que vão desde problemas graves como uma infância abusiva, até a um simples desgosto amoroso, é necessário compreenderem que ninguém tem uma resposta absoluta para um problema que eles próprios têm de resolver. Cabe àqueles que não foram ensinados, ou foram quebrados, apanhar, reunir e organizar as peças de modo a construir um caminho para a vida e desenvolverem padrões de pensamento saudáveis. Claro que isto não dispensa ajudas, desde que essas ajudas venham das pessoas certas, como psicólogos, que têm os melhores interesses destes jovens em mente.

Para além disto, acredito que um entendimento básico sobre táticas abusivas de controlo, como o D.A.R.V. O  (Deny, Attack, Reverse, Victim, Offender), bastante utilizada por abusadores quando são confrontados, onde trocam os “papéis” ao negarem o comportamento abusivo, atacando quem os acusa e fazendo-se passar por vítimas; a chantagem emocional através do medo, obrigação ou culpa; e a natureza cíclica das relações abusivas deviam ser de conhecimento geral.

Não apenas para evitar estes casos específicos de movimentos misóginos, mas também para evitar que pessoas, principalmente os mais jovens ou os que cresceram em domicílios disfuncionais, caiam em relações com dinâmicas abusivas. Ademais, este conhecimento é bastante útil até para a política, pois os próprios políticos muitas vezes implementam estas táticas. Abuso é sobre poder, e o primeiro passo para lidar com estas situações assertivamente é reconhecer isso, quer seja a vítima ou o potencial abusador.

Pode ler também