Os Açores pela lente de Laudalino

Foto: Laudalino da Ponte Pacheco

Num recanto da costa norte da ilha de São Miguel, na Vila da Maia, nasceu e cresceu um homem que se tornou um cronista visual da sua comunidade. Laudalino da Ponte Pacheco (1921-1998), um simples operário na Fábrica de Tabaco da Maia, tinha nas mãos algo mais do que os cigarros que ajudava a fabricar: uma câmara fotográfica. Com ela, durante décadas, registou momentos da vida quotidiana dos Açores, deixando um espólio com cerca de 155 mil imagens e alguns vídeos.

Quem o conheceu lembra-o como “um homem de talentos múltiplos”: foi carpinteiro, vendedor de rádios, distribuidor de tabaco, reparador de eletrodomésticos, socorrista — mas, acima de tudo, um fotógrafo apaixonado.

Esta paixão começou por volta de 1954 quando o irmão Dionísio, que tinha emigrado para o Canadá, lhe enviou uma câmara. Esta “engenhoca” mudou-lhe a vida. Começou a fazer retratos para passaportes e bilhetes de identidade, mas logo alargou o olhar para o que realmente o rodeava: procissões, romarias, matanças do porco, casamentos, velórios, festas do Espírito Santo, partidas e chegadas de emigrantes.

 

Laudalino e Maria dos Anjos

Começou por captar imagens na Maia, mas o serviço rapidamente chegou às localidades vizinhas. Numa primeira fase, Laudalino utilizava a bicicleta como meio de transporte para se deslocar ao Porto Formoso e à Lomba da Maia. Era um processo complexo e exigia uma rede de apoio. Depois de fotografar, mandava os rolos pelo irmão, José Remígio, que era cobrador na empresa de transportes Caetano Raposo Pereira, para o “Nóbrega” — um grande fotógrafo em São Miguel que tinha uma loja em Ponta Delgada. Era lá que as fotografias eram reveladas e impressas em papel. À medida que o volume de trabalho aumentava, Laudalino mantinha tudo devidamente registado, aplicando as suas competências de contabilista que exercia no seu emprego, na Fábrica de Tabaco. “Como Laudalino trabalhava a tempo inteiro, quando as fotografias chegavam da cidade, em papel, normalmente uma semana depois, era a Maria dos Anjos [esposa de Laudalino], com as instruções do marido, quem as ia vender, porta a porta, de freguesia em freguesia. Ao domingo iam os três, ele, a mulher e a filha, fazer a distribuição, sempre com indicações para aliciar os clientes para novas fotografias”, explica Maria Emanuel Albergaria, no livro Laudalino da Ponte Pacheco 1963-1975. Em dezembro de 1958, Laudalino comprou uma mota, que lhe permitiu chegar mais longe e aumentar o negócio.

A sua obra não é apenas abundante em volume, mas rica em significado. As fotografias são “documentos riquíssimos para a compreensão do território antropológico, sociológico e histórico da ilha de São Miguel”, afirma a investigadora Maria Emanuel Albergaria no livro. As fotografias mostram os rituais de grupo, as crenças, as expressões da população com uma qualidade estética notável, nomeadamente no domínio da luz e do enquadramento, segundo a editora do livro, Blanca Martín-Calero para a Agência Lusa. A professora de fotografia Margarida Medeiros destaca uma dimensão psicológica forte nas imagens: “alegria e a tristeza, a luta pela vida, como se a vida se processasse toda aí, nessas imagens, e o fotógrafo não pudesse separar as duas.” Além disso, o olhar de Laudalino era um olhar participativo, não era um simples observador externo, integrava a comunidade que fotografava.

Mesmo após o seu falecimento, o seu espólio permanece até hoje. Em junho de 2018, o arquivo foi depositado pela família na Santa Casa da Misericórdia do Divino Espírito Santo da Maia.

Ana Isabel Marques por Laudalino da Ponte Pacheco

Ainda hoje nos podemos cruzar com muitas das pessoas que foram fotografadas por Laudalino. É o caso de Ana Isabel Marques, que nasceu nos Fenais da Ajuda em 1960. Para ela, as imagens captadas pela lente do fotógrafo transcendem o papel, são máquinas do tempo. “Para mim, as fotografias que ele me tirou são como reviver a minha juventude.” O isolamento e as dificuldades da época ainda acrescem importância ao trabalho de Laudalino. “Era só através dele que podíamos ter uma recordação de fotografia, porque não havia outra forma”, explica. Nos anos 1960 e 1970 era muito complicado para as pessoas a deslocação à Ribeira Grande (a vila mais próxima da Maia e das freguesias vizinhas) para ir a um estúdio, para além de ser dispendioso. A fotografia era, por isso, um luxo raro, longe daquilo que conhecemos hoje: “era [só] uma fotografia do batizado essencialmente, tirada na pia batismal (…) mas era aquilo e a gente já ficava felizes com aquilo”.

 

 

Ana Isabel Marques e as irmãs por Laudalino da Ponte Pacheco

A visita de Laudalino era quase um ritual rigoroso. A sua chegada era anunciada pelo som do motor da sua mota, que as famílias aguardavam atentamente à porta de casa. As roupas de domingo que tinham sido usadas na missa de manhã e retiradas ao almoço para não se estragarem, voltavam a sair do armário. “A gente ia à missa, saía da missa, almoçava, quando a gente via que estava mais ou menos na hora de ele chegar, veste o vestido outra vez, calça o peúgo, calça o sapato e era tirada a fotografia para ficar minimamente bem vestida.”

 

Como diz Ana Isabel Marques, se existe documentação das vivências daquele tempo e das pessoas daquela zona, “foi graças a ele, se não, não havia nada”. O “fotógrafo da Maia” garantiu que a história de um povo não ficasse apenas “em mente”, mas gravada para sempre nos seus rolos fotográficos.

 

 

© Santa Casa da Misericórdia do Divino Espírito Santo da Maia. Todas as fotografias publicadas neste artigo têm direitos reservados.

 

 

 

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