Vila do Carvalho guarda memória nas canções populares

Fotografia do ensaio - autoria de Francisco Matos

Nas encostas verdejantes da Serra da Estrela, a Vila do Carvalho preserva um tesouro da cultura popular portuguesa e o seu fiel depositário é o Grupo de Danças e Cantares.Fundado a 13 de novembro de 1998, o grupo destaca-se por um repertório com músicas e coreografias de antigamente, herdadas de gerações passadas, que continuam a ser o símbolo da vila.

Os ensaios são de 15 em 15 dias e têm início às 21h30 às sextas-feiras. A sede do rancho é na escola primária da vila, que até já está encerrada para o ensino, mas continua a abrir para os ensaios deste grupo. Habitualmente, ensaiam na junta de freguesia apenas porque há mais espaço para as danças, e no verão é comum ensaiarem na rua. No entanto, em situações raras, o ensaio ocorre na escola. É o que acontece hoje.

 Ainda no exterior da junta de freguesia Lara Esteves, a acordeonista do grupo avisa os restantes elementos da mudança de local. Os carros dos elementos seguem assim, em direção à antiga escola primária, localizada a dois minutos de distância. O trajeto é curto, mas o maior desafio é encontrar estacionamento nas ruas apertadas da Vila do Carvalho, que deixam pouco espaço para manobras. E em redor da escola há poucos lugares de estacionamento.  

Quando se chega à escola, é de imediato percetível o ambiente de que já não se lecionam aulas, depois de ter recebido muitas gerações de alunos. Uma das antigas salas no primeiro piso abre-se para acolher mais um  ensaio do Grupo de Danças e Cantares da Vila do Carvalho. As luzes fluorescentes acendem-se e os 16 dançarinos e os dez músicos que também dão voz às canções ocupam os seus lugares. Pelas janelas grandes da sala vê-se a chuva a cair. No chão estão caixas e objetos que pertencem ao rancho. É numa das paredes brancas que estão réplicas dos fatos tradicionais do grupo, tanto o masculino como o feminino. Os 16 dançarinos alinham-se nos pares habituais, enquanto se começa a afinar e a ouvir os sons familiares do acordeão, das pandeiretas, do adufe e do reco-reco.

 

Início do ensaio do Grupo de Grupo de Danças e Cantares da Vila do Carvalho no dia 2 de Maio – autoria Francisco Matos

Tomás Salcedas, é desde 2023, o presidente da coletividade, de que já faz parte há dez anos, e conta com entusiasmo como tudo começou.“Fui ver uma atuação aqui na terra e depois entusiasmei- me e queria vir tocar o bombo. Só que depois não me deixaram tocar o bombo, e o ensaiador meteu-me a dançar”. O jovem de 24 anos é o presidente acrescenta ainda que, na pandemia, começou a aprender acordeão e que já dá uns toques no instrumento, e tanto toca como dança”.

É o senhor Agostinho quem ensaia os 35 a 40 elementos do rancho que variam entre os 5 e os 83 anos. Desde tenra idade que conhece estas andanças. “Quando era criança fazia parte de um rancho que existia cá na aldeia e eu casei com uma rapariga que também andava no rancho, eu fiz questão de mudar as danças todas”, conta o ensaiador.  Refere ainda que, este rancho não dança as músicas que os ranchos de outros locais do país. “Cada um tem que representar aquilo que tem, nós temos que representar aquilo que temos na terra, não podemos dançar músicas do Minho, nem do Algarve, temos que representar aquilo que nós somos”. 

Os livros com as letras das músicas abrem-se e os instrumentalistas começam a cantar o repertório que é constituído por “ Oliveira da Serra”, “Serra que nos beija ”, “ As Fontes da Nossa Terra”, “Nós viemos hoje da serra”. São músicas que foram compostas por habitantes, inspiradas na Serra da Estrela e na Aldeia do Carvalho. A canção “Castelo Branco” é excecionalmente a única canção que não representa a vila. “Aonde quer que vamos, vamos representar o nosso distrito. Como vamos representar o nosso distrito temos que dançar o Castelo Branco”, explica o ensaiador.

Os dançarinos já aqueceram e dançam com entusiasmo as músicas que passaram de geração em geração. Agostinho Franco explica como é realizada a escolha do repertório. “Foi escolhido logo nos primeiros tempos do grupo, há 27 anos, com base nas memórias e nas canções trazidas pelas pessoas mais velhas da vila.Reunimos os dados todos, fizemos pequenas alterações e foi assim que nasceu o que temos hoje.”

Ana Franco, de 88 anos, vive na Vila do Carvalho e foi operária têxtil. Durante anos, integrou o Grupo de Danças e Cantares, mas afastou-se por motivos de saúde. Ainda se lembra das músicas que se cantava antigamente no “ trabalho e quando íamos às vezes a passear cantávamos “, recorda, antes de soltar uma melodia. 

“Cantávamos, também, nas inaugurações, no cortejo, e no São João, pelas festas dos santos populares. Algumas são do rancho, eu sei muitas”, acrescenta.  Ana conheceu pessoas ligadas à criação das músicas do rancho, como o senhor Rui Rogeiro e da dona Lídia Lopes,  já falecidos. Também, transmitiu canções de geração em geração que hoje fazem parte do reportório desta coletividade. 

“Já a fui buscar e pô-la a casa para ela assistir a ensaios e atuações, para ir relembrar o tempo que andou no rancho, para ir revisitar pessoas”, diz o presidente, Tomás Salcedas. Ana não esconde a emoção quando fala do grupo. “Fico muito contente e não posso ver o rancho, dá-me para chorar, porque eu gosto muito da alegria e gosto muito da minha terra”. 

Luísa Quaresma também faz parte e é quem toca o adufe. Foi aos 14 anos que começou, noutro rancho da vila,até se casar e emigrar “Eu gosto muito disto, foi sempre a minha vida. Posso dizer que cresci no rancho”, confessa. Quando Luisa regressou à terra, o antigo rancho do Carvalhense já tinha terminado. E quando este foi fundado, veio ver, ouviu e acabou por ficar. As coreografias dançam-se a pares de todas as idades, onde se vê jovens e crianças a dançarem com pessoas mais velhas.

 

Os trajes utilizados pelo Grupo de Danças e Cantares da Vila do Carvalho refletem de forma fiel a identidade e a história desta zona da Beira Interior. São inspirados nos ofícios da região do início do século XX, como, as cerzideiras, os pastores, os padeiros e os moleiros. “Foram profissões que marcaram o modo de vida serrano, sempre ligado à pastorícia e à economia rural. Tivemos que nos basear nos ofícios que existiam na nossa região”, menciona Luísa Quaresma. Hoje em dia, os materiais são diferentes e as fardas são feitas com base em modelos antigos, muitos deles cedidos por habitantes da vila. 

O Grupo de Danças e Cantares mantém uma atividade regular ao longo de todo o ano, com destaque para momentos que mobilizam toda a comunidade. No inverno, o grupo dedica-se sobretudo ao tradicional canto das janeiras, percorrendo as casas da vila, começam depois do natal e termina no dia de reis. Além disso, o grupo realiza visitas a lares de idosos. 

Na Páscoa, em colaboração com a paróquia, o rancho participa no tradicional jogo do carrabaço. Após o padre visitar as coletividades da vila, o grupo junta-se para animar as ruas no jogo. Nesta tradição, os participantes alinham-se em fila, de costas uns para os outros, e atiram cântaros de barro por cima da cabeça uns dos outros, quando algum cântaro cai e se parte, os participantes têm de dançar à volta dele . Durante o verão, o grupo organiza o seu festival de dois em dois anos e,também,marca presença noutros festivais folclóricos, além de organizar intercâmbios culturais com ranchos de outras regiões do país, como o Algarve. 

Para o ensaiador Agostinho, o carinho da população é evidente. “Ainda agora no 25 de abril as pessoas estavam à espera que o rancho fizesse uma atuação mas como não estavam os elementos suficientes não conseguimos”. Já o presidente da associação destaca que, apesar da falta de apoios financeiros, o grupo ainda permanece graças às pessoas da vila “Gostam muito de nós, Podiamos fazer festas todos os anos e sabíamos que determinadas pessoas vão lá estar sempre, podíamos dançar sempre as mesmas músicas que nunca se iriam fartar. Por isso, acho que somos um grupo aqui da terra que faz muita falta”, acredita Tomás Salcedas.

O Grupo de Danças e Cantares da Vila do Carvalho continua a passar de geração em geração aquilo que liga o passado e o presente. Enquanto existirem membros que cantem, que dancem e haja quem assista, este grupo e esta tradição não vão terminar. 

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