Como é que foi a sua infância na Covilhã?
Eu vim de uma aldeia de Melo, que é na Beira Alta, ao pé de Gouveia, e vim aos 5 anos aqui para a Covilhã. Quando vim aqui para a Covilhã, fiz a escola primária e, ao contrário do meu irmão que foi logo estudar, eu quis ir trabalhar. Uma das fábricas onde estive foi uma fábrica de carpintaria e de serralharia, e que trabalhava para a indústria dos lanifícios. Eu estava no escritório, tinha os meus 13/14 anos, e estive em contacto, portanto, não só com os operários metalúrgicos, que sempre foi uma força reivindicativa, e visitava as fábricas todas daqui da Covilhã, porque entregava as faturas e ia receber depois o dinheiro. Apesar de ser muito novo, nós éramos já mais responsáveis do que hoje, porque nunca deixámos de trabalhar. O tempo de criança foi muito diminuto.
Tive muitos amigos no bairro onde eu cresci, que, aos 7 anos, foram trabalhar para as fábricas. Portanto, os tempos eram muito difíceis, e isso levou-me a uma certa consciencialização. A par disso, o que é que aconteceu? Quando cheguei cá, aos 5 anos, fui os escuteiros, mais o meu irmão que tinha já 10 anos. E, portanto, fiquei logo com as ideias de fazer todos os dias uma boa ação, e, portanto, fui-me desenvolvendo assim, namorando aqui pelos bairros, até que surgiu, em 1958, a vinda do general Humberto Delgado. O meu pai deu-me um tempo e dois bilhetes, eu e mais um amigo meu, um pouco mais velho do que eu, fomos então ao comício do general Humberto Delgado, e ficávamos radiantes, porque a Covilhã recebeu, em apoteose, o general Humberto Delgado. Eu tenho até uma fotografia, em que estou junto ao carro dele. Este é um comício que recebeu o general. À saída do comício, que foi no Teatro Cine aqui da Covilhã, deparámo-nos com uma surpresa desagradável. Havia um cordão da polícia que tapava a saída pela rua Rui Faleiro, e tínhamos que vir, portanto, para a praça.
E nós ficámos um bocado surpreendidos e criou-se ali um bocado de confusão. As pessoas responsáveis pelo comício disseram que não havia razão para aquele aparato policial, porque é certo e verdade que nós, quando começámos a sair, houve pessoas mais exaltadas, a berrar: assassinos, bandidos, e então gerou-se confusão. Eu tinha os meus 18 anos, ainda levei a duas cacetadas lá dos polícias, e aí cresceu a minha vida da revolta.
Tem alguma história, alguma peripécia que tenha vivido, nos escuteiros, que o tenha marcado?
Sim, marcou-me muito uma peripécia. Nós éramos católicos, e com os meus 14/15 anos, entraram na Covilhã os protestantes. E nós, como bons católicos, resolvemos invadir a igreja que eles tinham, ali ao pé da igreja de São Francisco. E, se nós o pensámos, bem o fizemos. Marcámos o dia para nos reunirmos à frente do Teatro Cine da Covilhã, e no dia anterior, no bairro, eu soube que o pastor vivia duas ruas acima da rua onde eu vivia. E é curioso, fui lá ver e fiquei surpreendido, porque só ouvi cânticos sobre Jesus Cristo. A esposa lá do doutor, era doutor Bock, acho que era este o nome, tocava acordeão, e tudo era sobre Jesus Cristo.
E eu fiquei só um bocadinho indignado. Mas o que é que será isto? Fui para casa, um bocadinho já atrasado, e minha mãe perguntou-me por onde é que eu tinha andado, e eu disse-lhe que tinha ido a casa dos protestantes. A minha mãe deu-me duas bofetadas. “Foste à casa do diabo”. Eu durante a noite pensei que qualquer coisa que estaria mal, isto não batia certo. Outro dia, fui para o hotel de cima, e o nosso grupo queria ir e invadir a igreja. Eu disse que não podia ser. Eu tinha estado lá no outro dia e só tinha ouvido falar sobre Jesus Cristo, e achava que havia ali qualquer coisa que estaria errada. Os meus colegas disseram “não, nós vamos fazer isto”. Então, fomos para ali abaixo todos.
Eu cheguei primeiro. Pus-me em frente à porta e não os deixei passar. Houve ali um burburinho. E nós não destruímos a casa lá dos pastores. Isto deu origem a que os meus pais ficassem aborrecidos comigo, principalmente a minha mãe. Outros escuteiros também ficaram lá. E a única pessoa que esteve do meu lado foi o padre Carreto. Que era um padre bondoso, um padre um bocadinho fora de série. E ele ofereceu-me o livro Os Quatro Evangelhos. E eu fui para casa, comecei a ler o livro, e esse livro marcou-me até hoje, e, portanto, o meu herói continua a ser Jesus Cristo. E, portanto, acho que este facto foi importantíssimo na minha vida. A consciência política veio com o general Humberto Delgado.
Então foi aí que nasceu a sua vontade de lutar contra o regime?
Exatamente. Os meus amigos disseram “mas como é que nós vamos lutar contra um regime tão tenebroso?”. Qualquer grupo de três, quatro pessoas, era um problema para a polícia. Nos cafés as pessoas olhavam-se sempre umas para as outras. E, portanto, havia muito receio e muito medo.
E nós pensamos, “como é que nós vamos proceder?”. E então resolvemos que a única maneira era através do Partido Comunista, porque se falava do Partido, falava-se em greves, havia greves. E eu lembrei-me que na minha fábrica houve dois operários que tinham feito greve. E fomos ver. Eu cheguei ao pé de um deles, o Correia, e contei-lhe a história, a ver se ele nos podia dar uma ajuda. E ele ficou um bocadinho desconfiado. E eu disse que tinha já um colega meu que já tinha mais anos até do que eu, e nós tínhamos mesmo entrado aqui na luta. Ele então indicou-me o camarada José Pires. Eu fui até lá com essa pessoa e, portanto, ele aceitou e pôs-me em contato com o Partido. Nós começámos a distribuir os papéis, começámos a escrever nas paredes. Até que em determinada altura distribuímos 500 cartas do bispo do Porto, D. António do Porto, em que ele apelava à greve, em que criticava o governo de Salazar (ele teve que se exilar e só veio para Portugal em 1968 na dita chamada Primavera Marcelista). Isto deu um bocado nas vistas o nosso grupo que éramos para aí uns 10 ou 12, a PIDE conseguiu meter uma pessoa como informadora. E esse rapaz, nós só vimos a saber uns anos depois mais tarde, que era ele, que era informador, começou a dizer tudo, só não dizia é como as coisas chegavam ao nosso poder.
Acabámos dois por ser presos para eles conseguirem tirar o nome desse camarada. Portanto, fui preso em 1959. Isso marcou-me porque fui para Coimbra e apesar da minha conexão de católico e dos meus pais terem alguma influência, que deu origem até que o bispo de Coimbra me fosse visitar e fez questão de me querer ver, o que só conseguiu passado uns dias grandes, um mês, admiti que pertencia ao partido, mas o que eles queriam saber era o nome lá do camarada. Eu conseguia resistir a isso porque o José Pires tinha cinco filhos e o mais velho era mais ou menos lá da minha idade. Eu já tinha estado em casa dele, já tinha lá almoçado e, portanto, tinha estabelecido uma ligação. E esse facto impediu-me de dar o nome, porque se não fosse esse facto, eu teria dado o nome, porque tive sete dias de estátua, que era a tortura preferida pela PIDE, que uma pessoa chega a um ponto que deseja a morte, não nos deixam dormir, estamos de pé.
Eu, quando saí de lá, depois de um ano e tal, depois de ser solto, ainda se notava na minha perna direita um nervo tinha saído. E foram muitas horas de pé, foram muitos encontrões, muitas bofetadas, um monte de soco, ao ponto que eu até fiquei com a cara inchada, deixei de ver. E foi por isso que o Bispo de Coimbra só me pode visitar passado um mês. E isso marcou a minha vida, deu-me esta força, esta determinação de continuar até hoje da liberdade, da solidariedade.
Até 1974 foi preso várias vezes pelo regime.
Sim, isto foi em 59. Em 74, eu já tinha estado três vezes preso, mesmo na tropa. Fui dado como indesejável ao exército português e passei um mau bocado, quer no presídio militar de Viseu, quer no presídio do Forte de Elvas, o Forte da Graça, onde andei com o barril às costas. E aquilo era tão, tão imundo. As pessoas deviam lá ir e ver onde nós estávamos. No Forte de Elvas, estávamos lá à volta de 600 presos, divididos por três alas, onde estávamos praticamente umas 20 horas. O tempo que estávamos fora era quando íamos almoçar, tínhamos uma hora lá do recreio e quando íamos para a barrilada. Eu cheguei a fazer três barriladas por dia, até que eu fui ao médico, era um médico civil, porque o médico militar que estava lá desistiu, disse que não estava de acordo com aqueles métodos que ali havia.
O médico civil aceitou a minha revolta e o deu-me como doente de coração. Então dava uma barrilada por dia, que era a barrilada dos doentes. Era uma maneira de fugir ali. Pois, porque aquilo era revoltante. Houve lá um caso também que me marcou, porque eu fui sempre católico, praticante. E o que é que aconteceu? A Igreja Católica foi uma Igreja, na sua maioria, colaborante com o fascismo. O próprio cardeal Cerejeira afirmou e escreveu que Salazar tinha sido enviado por Deus para salvar Portugal do comunismo. Portanto, veja como era a reacionária conservadora da Igreja Católica. No dia 13 de outubro de 1963, o padre queria fazer a procissão em homenagem a Nossa Senhora de Fátima. Eu disse-lhe “você não faz isso, você já alguma vez entrou nas aulas onde nós estávamos? Nunca, então venha cá”. E levei-o à ala. Ele entrou na ala, fazia um L. E, como era já em outubro, gotejava a água da cúpula, que era um tipo de abóboda. O sol nunca lá entrava. Havia uma “esprincha”, só via, só entrava, claridade, o sol nunca lá entrava.
E havia um tanque grande, redondo e um copo de alumínio onde nós íamos pegar a água. Portanto, havia um copo para 200 pessoas beberem água. “Veja”, e então ele chegou ali, pegou um copo de água, benzeu e disse “você tinha razão, agora já existe cá Deus”. Não houve procissão e ele foi-se embora. Portanto, isto mais me deu força porque é preciso nós lutarmos. Porque as liberdades, os direitos não são oferecidos, nunca são oferecidos, são conquistados.
Depois de sair da tropa, já estava casado há sete meses, pelas minhas intervenções no meio associativo. Concretamente no grupo de educação do bairro onde eu morava. Fui novamente preso. Portanto, eu nunca desisti da minha luta. Em 1969 já com o Marcelo, a oposição esteve presente aqui meu distrito, aqui de Castelo Branco. Em concreto era com o escritor António Alçada Batista. Eu colaborei com ele e mantive-me sempre ativo. Depois havia um partido, um movimento mais ou menos que tudo aquilo que fazia era na legalidade, numa legalidade que era mais ou menos consentida pelo Salazar, o Movimento Democrático Português, Comissão Eleitoral Democrática, da qual eu vim ser candidato em 1973.
Um dos factos determinantes também foi que tivemos dois congressos, um com o nome de Congresso Republicano e depois numa reunião posterior que houve em São Pedro de Moelo, onde estavam vários ilustres da oposição contra o Salazar, foi decidido, mudar o nome do Congresso Republicano para Congresso Democrático, para incluirmos os monárquicos. Portanto, esta foi também detrimento para mim porque tudo o que nós fazíamos tinha por objetivo criar a unidade entre todas as forças que se opunham a Salazar. Este é o melhor exemplo que eu ainda hoje tenho, é que não devemos apenas ter a nossa verdade, devemos fazer com que haja uma verdade que saia do grupo e não de um indivíduo.
Depois do 25 de Abri manteve-se ativo no Partido Comunista?
Eu depois continuei sempre e quando o 25 de Abril se deu, eu era um género de comunista, continuei lá no partido, mas um comunista que não fazia já as colagens. Só fiquei com a incumbência de fazer a ligação direta aos operários do topo centro, porque a repressão era muito dura e em 1963 tinha havido no distrito de Castelo Branco à volta de 30 prisões e, portanto, a luta era muito repressiva e havia dificuldades. E, como o partido confiava em mim, e os operários também, porque sabiam que eu, de facto, não tinha dado nome lá do camarada José Pires. Portanto, ficou determinado que era eu que tinha que fazer a ligação no Tortosendo, que era uma vila muito reivindicativa, considerada pela Vila Vermelha na altura. E, portanto, foram estas lutas todas que fizeram de mim o homem que continua a ser pela liberdade, pela democracia, solidariedade e, pronto, estou disposto a vir à luta. Hoje os tempos são difíceis, há guerras em todo o lado e, para mim, é preciso ir para a rua, eu vou para a rua.
Em 2023 escreveu o livro Palavras Soltas ao Vento. O que é que o inspirou a escrevê-lo?
Esse livro é um livro que conta um pouco da vida com a minha esposa, que acabou por partir com uma doença crónica que é o cancro. Foram três anos de luta. Foi a mulher com quem vivi 42 anos, sempre me acompanhou nas lutas. Um episódio, por exemplo, quando eu fui preso na loja lá dos meus pais. Depois fomos à casa para revistarem a casa e tudo. E ela não chorou. Porque eu lhe falei para não chorar. E ela viu, assistiu à casa ser revistada, viu-me a ser levado pela PIDE e não chorou. No Tortosendo havia um clube muito forte da resistência, que era o Unidos do Tortosendo, ela acabou por ser nomeada sócia honorária, porque me acompanhava, íamos lá, cantávamos, fazíamos, falávamos, eu declamava. Portanto, foi uma mulher extraordinária. Deu-me dois filhos e, portanto, quando ela faleceu, eu passei um mau bocado, um mau bocado mesmo.
E passado quase um ano, em novembro de 2009, o IPO de Coimbra convidou-me para ir lá. Foi um convite de quase uma ordem. Ia dar o meu testemunho dos 3 anos de luta ao lado lá da minha mulher e do ano que eu tinha vivido sozinho. Eu recusei, disse que não estava em condições, mas eles insistiram comigo e eu também me senti na obrigação pelo tratamento amigo que tinham feito lá com ela e então escrevi. Escrevi e não sei quanto tempo é que estive a ler. Era uma sala grande, só havia as batas brancas. Chorei e ao outro dia almocei lá com algumas pessoas do IPO e elas disseram-me “o senhor já alguma vez tinha escrito assim alguma coisa? Não, nunca escrevi. É que nós vamos-lhe pedir se podemos publicar no nosso site o seu testemunho”. Está lá no site do IPO, está num livro que uma médica do IPO fez, tem o prefácio do atual Presidente da República, e eles disseram, “porque é que o senhor não vai para casa e escreve?”. E segui o conselho e passado um ano tinha o meu primeiro livro.
O livro das “Palavras Soltas ao Vento” também foi escrito porque além de contar esse episódio da minha mulher também refere um pouquinho daquilo que está a acontecer comigo que também tenho uma luta contra o cancro e portanto tento com esse livro dizer que é possível continuarmos a ser felizes, continuar a lutar pelos ideais que nos rodeiam e que devemos acima de tudo ter consciência de que temos que ter pensamentos positivos e dar às pessoas que nos rodeiam uma atitude positiva de que andamos bem de dispostos, continuo a acreditar que se deve lutar pela liberdade, pelos ideais, por um mundo melhor e não é só falar, devemos ter atitudes concretas.
Eu trato o cancro pelo meu irmão e a morte pela minha irmã isto. Quando a minha irmã morte vier eu vou-lhe dizer que não vou com ela, vou voar, vou sonhar e vou ao encontro das pessoas que eu amo e que amei e que continuo a amar.
Que sonho é que ainda lhe falta concretizar?
Eu penso que ainda vou viver mais uns tempos, e se conseguir aguentar-me mais um ano, quero escrever um livro chamado sobre a historia do meu pai, dos meus tios e do meu avô, sobre a pobreza que houve em Portugal e que obrigou as pessoas a emigrar, mas que veio morrer a Melo. Vou tentar contar essa história, e depois como o meu pai era amigo do Virgílio Ferreira, um escritor muito conhecido que nasceu em Melo, também o vou incluir e vou falar também da historia de um tio meu que foi um grande pintor no Brasil.