Em pleno coração do Auditório da Biblioteca Central da Universidade da Beira Interior, na noite de 27 de novembro, um grupo de leitores reuniu o Clube de Leitura “Dois Pares e Meio de Asas”, não apenas para discutir dois livros clássicos, mas para explorar aquilo que torna a humanidade vulnerável e, simultaneamente, resiliente.
A escolha dos títulos não foi casual. Noites Brancas, de Fiódor Dostoiévski, e A Metamorfose, de Franz Kafka, são duas obras que falam de recomeço, perda, identidade e abandono. Um mergulho que vai muito além do academicismo — é um espelho da vida real.
Edgar Bodião, estudante de Estudos Portugueses e Espanhóis no primeiro ano, trouxe uma perspetiva clara sobre a importância destes espaços. “Acho que é muito importante que todos nos possamos reunir e discutir opiniões. Falta muito hoje em dia que as pessoas, cara a cara, possam partilhar opiniões, discutir e entrar em controvérsias. Porque, a partir daí, podemos aprender muitas coisas uns com os outros.” Para Edgar, este tipo de iniciativas estimula não só a leitura, mas também o desenvolvimento de espírito crítico. “O espírito crítico hoje em dia está direcionado para as redes sociais de forma anónima. Aqui podemos ter um grupo que discute questões filosóficas, psicologia, sociedade, política.”
À medida que as páginas iam sendo lembradas em voz alta, as pessoas pareciam reconhecer-se nas personagens. Havia quem se deixasse em silêncio, quem anotasse num caderno, quem risse de nervoso
. Falou-se de sonhos que vão encolhendo com o passar dos anos, de projetos que ficam em pausa. Falou-se também daquele momento em que se percebe que já não se encaixa nas expectativas. Entre confissões e pausas longas, a literatura funcionava quase como pretexto para falar da vida real.
Durante o debate, uma voz destacou a importância de unir gerações em torno de ideias comuns: “Então temos que nos unir, não dividirmos entre gerações. Todos podemos dar algo com a nossa experiência. Eu sei muitas coisas, mas também sou ignorante em muitas outras, mas esse conhecimento que tenho posso dar.” A discussão evoluiu para questões sobre democracia e participação cidadã. “Ter aqui no clube de leitura é quase um ato de resistência. Cada vez se fomenta que se tenha livros, mas as plataformas sociais têm sido usadas como forma de uniformizar e desinformar. Ultimamente não se informa, desinforma-se.”
Sentar-se para ler e ouvir sem pressa transformava-se ali num ato político discreto: dizer que ainda vale a pena parar, refletir e dar tempo às histórias dos outros. No círculo do clube não havia hierarquias; docentes, estudantes e elementos da comunidade partilhavam o mesmo lugar e a mesma vulnerabilidade. O formato ajudava a criar essa intimidade. Sem mesa de honra nem palco, todos viam a expressão uns dos outros quando uma frase batia mais fundo. Por momentos, o auditório deixava de ser apenas uma sala de eventos para se tornar quase numa sala de estar coletiva.
Quando o encontro se aproximou do fim, surgiram propostas entusiastas para o futuro. Planos para intercalar encontros de discussão de livros com oficinas de escrita criativa, cursos temáticos e conversas com especialistas. “Em fevereiro, podemos fazer uma sessão de escrita criativa. Depois em março, falarmos outra vez sobre um livro. Quem quiser propor outra coisa, pode ser outra coisa — não tem que ser sempre escrita criativa. Podemos convidar alguém sobre matemática, sobre psicologia.”
Ninguém parecia com verdadeira vontade de se levantar quando o encontro chegou ao fim. O Clube de Leitura “Dois Pares e Meio de Asas” encerrou o ano com a certeza de que ler é muito mais do que cumprir uma lista de clássicos; é uma forma de estar no mundo com mais lucidez e mais cuidado pelos outros. Em 2026, novos títulos e novos participantes vão ocupar aquelas cadeiras em círculo. Mas a pergunta que ficou no ar — como continuar a resistir através da leitura? — parece já ter uma resposta ensaiada em cada sessão: voltar, ouvir, ler em conjunto e aceitar que, às vezes, é na ficção que se encontra a coragem para mudar a própria realidade.
