“A xenofobia contra brasileiros em Portugal é um recorde de bilheteria”

Ana Gigi (esquerda) e Keli Freitas (direita) são as protagonistas da peça "Volta para a Tua Terra". Foto: Reprodução / Teatro São Luiz.

Peça “Volta Para a Tua Terra” passou pelo TMC durante o Festival Y. 

O Teatro Municipal da Covilhã foi palco para o contar de uma história que tem se repetido cada vez mais em solo português. “Volta Para a Tua Terra”, peça da autoria da brasileira Keli Freitas, não pretende apenas falar sobre o sentido do pertencimento do imigrante, mas também sobre as histórias de vida de mulheres vivas. O projeto, que nasceu a partir da procura dos registos de nascimento da bisavó falecida, nascida em Torres Vedras, desencadeou aquela que é uma das últimas produções teatrais de Keli, que se tornou mestre em Estudos Portugueses, pela Universidade Nova de Lisboa. 

O espetáculo conta com a participação de Ana Gigi, que recebeu Keli em sua primeira casa após a chegada em Lisboa, capital portuguesa, em 2018. A dramaturga brasileira, assim como a luso-verdiana, divide suas atuações na peça entre contar algumas de suas histórias como imigrantes e debater os sacrifícios de mulheres imigrantes, seja a sair de ou a chegar em Portugal. O espetáculo aborda temas como identidade, pertencimento e a experiência dos imigrantes brasileiros em Portugal. A peça questiona o insulto xenófobo “volta para a tua terra” e transforma essa frase em uma reflexão sobre a complexidade das relações entre Brasil e Portugal. A obra pode ser interpretada como uma mistura de biografia, história e crítica social, utilizando a experiência pessoal da autora para lançar luz sobre questões universais de imigração.

O projeto de Keli Freitas e Ana Gigi venceu a 2ª edição do Projeto Casa, uma iniciativa promovida pel’A Oficina/Centro Cultural Vila Flor, O Espaço do Tempo e Cineteatro Louletano. “Volta Para a Tua Terra” fez parte da programação artística do Festival Y – festival de artes performativas, organizado pelo grupo Quarta Parede desde 2003, a partir da Covilhã. A iniciativa privilegia as linguagens artísticas emergentes e os cruzamentos disciplinares. Em sua 21ª edição, o Y começou no dia 20 de março e terá espetáculos até o dia 14 de junho, nas cidades de Covilhã, Castelo Branco, Belmonte e Fundão. A programação completa do Festival Y pode ser consultada no site oficial. 

À conversa com o URBI após o espetáculo “Volta Para a Tua Terra”, Keli Freitas falou sobre o processo de criação da peça, sua relação com Portugal, terra natal da bisavó Virgínia e onde vive desde 2018, mas também sobre a amizade que construiu com sua primeira senhoria, Ana Virgínia, a Gigi, com quem divide o palco na interpretação da peça. 

Como surgiu a ideia de transformar a busca pelas suas raízes portuguesas em peça de teatro? E o que foi mais marcante nesse processo de criação e concretização?
A ideia surgiu quando comecei a pesquisar sobre as raízes da minha família em Portugal. Primeiro, descobri que tinha uma bisavó portuguesa. Depois, veio a curiosidade: na posse da família, não havia o documento de nascimento dela. Só sabíamos que ela era portuguesa porque nos foi contado, mas não havia comprovação documental. Como eu já era imigrante — recém-chegada a Portugal, mas ciente das dificuldades que enfrentaria como imigrante, especialmente em relação à documentação —, essa ironia me marcou profundamente. Eu era descendente de uma portuguesa, como tantos milhares de brasileiros que vivem aqui e que, mesmo com raízes próximas, não têm, na prática, direitos assegurados. Essa relação, tão forte e ao mesmo tempo tão frágil diante da legislação, despertou meu interesse. Quando comecei a frequentar a Torre do Tombo em busca do nome dela, achei que seria praticamente impossível encontrar algo. Eu só tinha o primeiro nome e o local de nascimento. Quando finalmente encontrei o documento, senti uma emoção muito intensa, inesperada. Foi um ponto de virada. Não era mais algo que eu poderia esquecer. Decidi que pesquisar essa história e escrever sobre ela seria uma oportunidade de falar sobre o absurdo da vida como imigrante brasileiro em Portugal.

Qual era a sua intenção, como autora, em relação ao papel e à influência da Gigi na história?
R: Eu queria falar das mulheres vivas, usando a desculpa de falar sobre mulheres desaparecidas. Desde o início, sabia que não seria uma peça sobre a minha bisavó, mas sobre a bisneta viva e suas vivências. A Gigi, como a peça mostra, foi a primeira pessoa que encontrei quando cheguei em Portugal. Tornou-se uma das minhas melhores amigas, uma das mulheres mais importantes da minha vida. Falar da minha relação com Portugal, passando pela Gigi, me pareceu dramaturgicamente forte — ainda mais considerando que, por coincidência, ela tem o mesmo nome da minha bisavó, Virgínia. Nada disso seria possível sem o aceite dela. Aos 77 anos, Gigi estreia no teatro, o que diz muito sobre sua coragem. Além disso, ambas somos imigrantes: eu retornando para a terra do colonizador e ela para uma terra colonizada por Portugal. Achei esse diagrama irônico e potente. Não é apenas uma história pessoal; é sobre a língua, a história e a escolha de onde estar.

Como vocês trabalham a questão do pertencimento durante a peça? Que reflexões você acredita que essa temática pode provocar no público, especialmente entre os brasileiros?
R: Eu não tenho como prever o que o público sentirá, mas espero que se sensibilizem de alguma forma. Há informações que não estão explicitamente na peça, mas conto com o conhecimento prévio das pessoas — como o crescimento da xenofobia contra brasileiros em Portugal, que aumentou 500% nos últimos dois anos, segundo dados públicos. Antes mesmo da peça começar, já espero que o público saiba disso. Assim, a nossa relação em cena — uma brasileira e uma cabo-verdiana-portuguesa — fala também sobre pertencimento, sem precisar teorizar. A nossa parceria é, por si só, um gesto político. Criamos um espaço onde as relações valem mais do que a posse de papéis oficiais.

Sobre o nome da peça, como se deu a escolha? O que ele representa para você?
R: Durante três anos, a peça teve um nome provisório relacionado à bisavó. Mas, com o tempo, os meus deslocamentos — as viagens para Torres Vedras, para tocar piano na igreja, depois clarinete — me deram uma nova perspectiva. Percebi que o insulto xenófobo “volta para a tua terra” poderia ser ressignificado. Se eu levasse esse xingamento ao pé da letra, acabaria em Portugal (onde mora há alguns anos); e a Gigi, em Cabo Verde. O nome da peça é quase uma equação: uma provocação. Convido o público a pensar: “Que terra é essa?” “O que está errado nesse insulto?”

Como foi o processo de construção da narrativa, desde a pesquisa até a criação pessoal e histórica?
R: Foi um processo que se confundiu com a minha vida. Tudo começou por interesse pessoal, com muito investimento próprio. Tive apoios importantes, como a residência artística no Teatro Viriato, em 2020, e depois uma bolsa do Projeto Casa, que viabilizou o espetáculo. Durante a pandemia, fiz cursos online de teatro biográfico, especialmente com a Janaína Leite, que trabalha com teatro documental. Esses estudos me deram coragem para iniciar ações práticas — como visitar a igreja de Torres Vedras no dia em que minha bisavó completaria 120 anos. Essas experiências práticas já eram, para mim, o espetáculo. Em 2023, finalmente, com a bolsa do Projeto Casa, decidi que a peça não seria um monólogo: precisava da Gigi comigo.

Durante o processo de criação e apresentação, o que você e Gigi descobriram sobre pertencimento?
R: Nós não discutimos pertencimento; nós o vivemos. A peça não teoriza sobre pertencimento, ela atravessa essa questão através da nossa relação real em cena. Nos ensaios, a maior preocupação da Gigi era decorar o texto, não discutir conceitos. Ela nunca tinha feito teatro antes e estava se lançando numa experiência totalmente nova. Eu queria criar um espaço onde nossa relação pudesse existir em cena, sem forçar uma performance que nos afastasse da nossa verdade. Assim, o pertencimento que mostramos é muito mais visceral do que intelectual: é o que se sente, não o que se explica.

Quais foram as reações mais marcantes do público até agora?
R: O público nunca vem falar sobre aspectos técnicos. Eles vêm emocionados. Ouvi muitos comentários dizendo que a peça foi uma “lufada de ar fresco”. No início, isso me deixou inquieta — eu não queria que a peça fosse simplesmente agradável. Mas entendi que essa leveza talvez venha da nossa relação em cena, da forma como conseguimos nos divertir enquanto falamos de temas duros. O comentário mais bonito veio de uma amiga, também imigrante, que disse: “Eu não vi a emoção chegando.” Ela foi tomada pela emoção de forma inesperada — e para mim, esse é um dos maiores méritos que uma peça pode ter. A violência contra brasileiros está lá, mesmo que de forma não escancarada. E é disso que a peça trata: de resistir com afeto, humor e presença.

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