Sónia de Sá: da rebeldia minhota à voz da igualdade na UBI

A imagem que Sónia de Sá, docente da Universidade da Beira Interior, tem de si na adolescência é quase um eco distante, uma memória realçada pelo tempo. “Parece que foi noutra vida. Já nem sequer tenho grandes memórias”, começa, com um sorriso, agradecendo o convite para esta viagem ao passado. Aos 45 anos, a sua adolescência, vivida há mais de duas décadas, surge-lhe como um período de felicidade e irreverência marcante, um contraponto à norma da maioria das pessoas que conhece.

Nascida numa família numerosa, cinco irmãos, pai e mãe, num lar minhoto que cultivava a união e o trabalho, Sónia encontrou cedo o seu próprio caminho. O seu pai, um ex-militar “extremamente rigoroso”, impunha uma disciplina quase castrense, como o ritual do almoço à hora exata, sem margem para atrasos. A mãe, “muito mais carinhosa”, era o contraponto perfeito, suavizando a rigidez paterna. E Sónia? Sónia era a rebelde, a “contracorrente”, a que desafiava todas as imposições. “Eu tentava ultrapassar todos os limites que me impunham,” recorda, com um brilho nos olhos que revela a jovialidade de quem sempre procurou a sua própria voz.

Foi essa irreverência que a levou a começar a trabalhar aos 16 anos, enquanto ainda estudava. Um acaso ditou o seu percurso: num café, alguém de uma rádio local ouviu a sua voz e a convidou para fazer testes. Começou como voz de publicidade, evoluiu para locutora e, durante “cerca de 12 para 13 anos,” a rádio foi o seu mundo. A adolescência de Sónia é, assim, uma tapeçaria de felicidade, muita irreverência e uma dedicação aos estudos que, para ela, era quase inata. “Eu tinha a felicidade de absorver os conteúdos com qualidade” confessa, explicando que não precisava de estudar excessivamente. Curiosamente, a sua formação inicial foi em ciências, com uma vertente de desporto, era nadadora federada, um contraste marcante com a sua área atual. Essa fase foi, acima de tudo, um período de “muita descoberta,” livre de sofrimento.

A “tagarela” da família

A sua ligação à comunicação, embora catalisada por um acaso, parecia já inscrita no seu ADN. “Já vinha desde antes”, confirma Sónia, descrevendo-se como a mais “tagarela” da família, com uma gargalhada alta e uma voz “bastante colocada”. Crescer numa família minhota alargada, onde a união e a presença constante de muitas pessoas eram a norma, talvez tenha moldado a sua facilidade em falar em público e a expressar-se sem grande timidez. “Comecei desde muito cedo a imaginar que programas é que eu podia fazer,” revela, embora na altura o seu desejo principal fosse ser desportista.

A entrada na universidade, contudo, não seguiu o percurso “normal” de uma jovem de 18 anos. Sónia era trabalhadora-estudante, a primeira da sua família numerosa a desejar ingressar no ensino superior. O pai, com o seu rigor, manifestava preocupação pela injustiça em relação aos irmãos mais velhos que não tiveram essa oportunidade. Mais uma vez, a rebeldia falou mais alto. “Trabalhei,” afirma. A sua área de formação inicial não a preparava para a comunicação, levando-a a dedicar mais um ano aos estudos, trabalhando de dia e aprofundando o português e filosofia à noite.

As candidaturas à universidade, feitas à mão na sua época, eram um labirinto de códigos. Por um erro no preenchimento, entrou em Educação Básica na Universidade de Trás-os-Montes. Foram apenas três meses, vividos numa rotina de idas e vindas a Vila Real para trabalhar, e uma praxe que não a convenceu. “Colocava muitas questões às penas que me eram dadas em praxe, portanto, era convidada a não ir”, recorda, mostrando que a sua consciência crítica e irreverência já se manifestavam na altura.

A Procura Pela Vocação e o Preço da Determinação

Decidida a corrigir o rumo, Sónia voltou a fazer exames nacionais, focada em subir a sua média, e conseguiu ingressar na Universidade do Minho, para a licenciatura em comunicação. Com 20 anos, era já “mais velha que os seus colegas,” com a experiência da praxe e cinco anos de trabalho. A sua vida académica foi, então, uma odisseia de exigência: uma licenciatura de cinco anos que a levou a trabalhar em dois sítios em simultâneo, na Rádio Clube Português e na Revista Visão.

“Tinha uma vida de muito pouco descanso, estudava madrugada adentro, vezes sem conta”, descreve. Como jornalista do primeiro turno, chegava a estudar até às duas ou três da manhã e, às cinco e meia, já estava de pé para o programa da manhã da Rádio Clube Português, transmitido de Braga. Esta rotina intensa, que hoje “já não conseguiria” manter, fê-la viver “muito pouco aquilo que é uma parte também muito importante da vida académica, que é termos uma noite de total diversão”. A memória que guarda da universidade é a de “mandar calar os colegas”, porque queria estar atenta e depois ir-se embora. Era tudo menos uma estudante “normal”, pois tinha de pagar os estudos e a sua própria casa. Foi um período de “enorme aprendizagem”, mas “muito exigente”, no qual, apesar de tudo, era “muito feliz” com o que fazia.

O Salto para a Covilhã: Um Refúgio e Um Novo Lar

A sua pós-graduação e mestrado foram concluídos na Universidade do Minho. O salto para a Covilhã, no entanto, para o doutoramento, marcou uma nova e decisiva fase. Formalmente, a mudança foi impulsionada pelo desejo de ser orientada pelo Professor António Fidalgo, figura de referência académica que muito admira. Mas, por trás da motivação académica, havia uma razão pessoal profunda: “Vim eu fugindo, numa circunstância pessoal muito difícil e eu precisava de estar distante do local onde vivia.”

A Covilhã e a UBI tornaram-se o seu refúgio, o seu “lugar seguro”. Conseguiu uma bolsa de doutoramento e, embora inicialmente pensasse que regressaria à terra natal quando a sua vida deixasse de estar em perigo, acabou por se sentir em casa. “Hoje, a universidade é a minha casa e a Covilhã é o meu sítio. Aqui sinto-me em casa”, revela, com uma emoção palpável. Embora sinta saudades do Minho e regresse pelo menos uma vez por mês para estar com a família, a ideia de voltar para lá, mesmo como professora, nunca mais lhe surgiu. “Nunca pensei nisso. De facto, interiorizei e eu acredito que a universidade e as pessoas que me acolheram na altura salvaram-me a vida.”

A Luta pela Igualdade: Uma Consequência da Experiência Pessoal

A sua natureza “irreverente” e “contracorrente” desde a adolescência encontrou um novo propósito na luta pela igualdade, não apenas das mulheres, mas das crianças e das minorias. Esta luta ganhou forma e voz a partir da sua experiência pessoal.

“A minha experiência pessoal levou-me a ter anos sérios de algum sofrimento”, confessa, mas esse sofrimento, paradoxalmente, deu-lhe força ou conduziu-a “para o lugar, talvez, onde esteja hoje em termos sociais, em termos cívicos.” Para além da sua vida académica, Sónia de Sá é uma ativista incansável, especialmente na defesa dos direitos das mulheres vítimas e sobreviventes de violência doméstica, de crianças em circunstâncias semelhantes e de minorias.

Trabalha diretamente através da CooLabora, uma organização que, sublinha, a ajudou a sobreviver num período difícil. É também voluntária num lar de acolhimento de crianças retiradas das suas famílias, e num projeto para crianças e jovens de famílias desestruturadas, dando-lhes apoio através da comunicação e da ideia de reportagem do mundo. Esta vertente ativista, assume, mistura-se com a sua docência: “Provavelmente, sou a professora que sou porque tenho esta vertente muito ativa”. Tenta integrar nas suas aulas os valores de inclusão e diversidade, que resultam num modelo pedagógico “que se distingue daquilo que são os modelos mais regulares”. A sua luta pela liberdade começou, de facto, quando sentiu que a sua própria liberdade lhe foi tirada.

O Desafio da Abordagem Pedagógica e a Comissão para a Igualdade

Recentemente, a sua abordagem pedagógica gerou uma queixa por parte de alguns alunos. Sónia assume que lidar com isso “não tem sido fácil,” pois sempre priorizou o bem-estar dos  estudantes. “Eu não consigo começar uma aula sem perceber primeiro como é que estão as pessoas. Se alguém está a faltar muito eu quero saber porquê”, explica, confessando que esta preocupação foi considerada intrusiva. A situação levou-a a demonstrar menos abertamente essa preocupação, embora ela permaneça.

Enquanto presidente da Comissão para a Igualdade na Universidade da Beira Interior, Sónia de Sá está ativamente envolvida na criação do novo plano para a igualdade e diversidade. Um dos pontos mais preocupantes, identificado em diagnósticos alargados, é a dificuldade persistente das mulheres em ascender na carreira e em alcançar lugares de decisão, especialmente na academia. “Por exemplo, na nossa faculdade nunca houve uma mulher professora catedrática, na Faculdade de Engenharias a mesma coisa”, revela.

Sónia não acredita que isso se deva a questões partidárias, mas sim à exigência acrescida que ainda recai sobre as mulheres. Dados indicam que as mulheres, apesar de serem em maior número na investigação, têm um percurso mais dificultado. “A mulher continua a ter muito mais responsabilidades familiares do que tem o homem”, afirma, referindo-se à maternidade e ao desafio de conciliar a vida profissional com a pessoal. Embora a divisão de tarefas na parentalidade esteja a mudar, a biologia e as expectativas sociais ainda pesam sobre as mulheres, que “demoram mais anos a chegarem ao topo dos que os homens”. Esta é uma das vertentes a ser trabalhada no plano para a igualdade, visando um equilíbrio entre a vida profissional e académica, que abranja professores, funcionários e estudantes.

A Comissão, que inclui elementos da Associação Académica, está a trabalhar na criação de um protocolo contra o assédio, com o objetivo de que as festas académicas “não sejam confundidas com liberdade para abusar”, mas sim com “liberdade para ser feliz”. Há ainda a preocupação com o acolhimento de alunos estrangeiros, que muitas vezes se sentem perdidos, e a necessidade de criar espaços de voz para as minorias “eternamente silenciadas”.

A Maternidade e o Crescimento do Chega: Reflexões Pessoais e Sociais

A questão da maternidade é um ponto sensível na vida de Sónia. O que a impede de ser mãe não é a escolha profissional, mas sim o seu corpo. Fala abertamente da sua infertilidade, não só para partilhar a sua experiência, mas para preparar outras mulheres para essa realidade. A adoção, para ela, é impensável, dada a sua ligação com crianças institucionalizadas como voluntária. É uma “posição política” e uma “sensação de incompletude” que a acompanhará.

Por fim, Sónia partilha a sua profunda preocupação com o crescimento do partido Chega nas recentes eleições. “Eu, pessoalmente, ainda estou no processo de um certo luto”, confessa. Na Comissão para a Igualdade tem-se refletido sobre as razões por trás deste fenómeno. Preocupa-a “porque há uma grande franja, por exemplo, de estudantes universitários homens que votaram neste partido mais extremista”, que demonstram pouca abertura à diversidade, inclusão e respeito pelos direitos humanos.

Apesar de não acreditar que todos os eleitores do Chega sejam machistas, xenófobos ou racistas, quer “perceber porquê” esta necessidade de revolta. “As coisas, em algumas circunstâncias, não estão bem. A vida está, de facto, mais cara em Portugal”, reconhece, aludindo a problemas como o acesso ao emprego e à habitação.

Sónia questiona a perda de caminho e mensagem dos partidos da alternância política pós 25 de abril, que resultou numa “séria falta de credibilidade.” O que mais a inquieta é a banalização de discursos homofóbicos, xenófobos, racistas, machistas e misóginos, que são “profundamente” perniciosos e “têm consequências gravíssimas”. “Há uma tentativa de normalizar estes discursos”, lamenta, defendendo a necessidade de as instituições, e os jovens, estarem mais presentes na defesa dos valores democráticos. A mensagem que passa hoje, considera, é “muito pouco positiva”.

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