O forno que aquece a tradição

O pão caseiro em Santo Estevão, Chaves, é uma tradição que se mantém viva pelo olhar, pelas mãos e pelas rezas. Através de memórias de infância e gestos antigos, duas guardiãs lutam para garantir que o cheiro e a crocância de um “rico pão” resistam ao esquecimento.

Numa pacata vila do concelho de Chaves, o passado não é apenas memória: cheira a pão fresco. O antigo forno comunitário, que outrora foi o verdadeiro coração da aldeia, o pilar de sustento para a maioria das famílias e o refúgio acolhedor contra o frio para os mais pobres, hoje resiste ao tempo pelas mãos de Maria Fernanda Dias e Adosinda Chaves.

 

Maria e a arte de fazer pão apenas “com o olhar”

Com 78 anos, Maria Fernanda Dias nasceu, cresceu e vive por Santo Estêvão. Desde os 15 que nunca parou, do trabalho no campo e no fumeiro, à costura e ao croché, o amor pelas tradições e pela vida rural é a sua força diária.

Recorda-se do forno desde que era “pequenina”. Apenas “com o olhar” e uma peneira nas mãos, aprendeu a arte da cozedura, seguindo de perto as pisadas da mãe, que cozia e vendia pão diariamente para o sustento da família.

Sempre cresceu neste ritmo, observando e absorvendo a tradição. Até que um dia, com a massa já preparada, a mãe foi a Chaves e demorou mais do que o previsto. Sem hesitar, Maria Fernanda usou a sua “habilidade” e começou a pesar a massa e a usar tabuleiros emprestados da vizinha. Foi a sua primeira fornada e um ponto de viragem para o resto da vida.

 

A responsabilidade de alimentar os irmãos

As histórias eram comuns. Adosinda Chaves, de 72 anos, também seguiu o caminho da mãe no forno comunitário. Aos 13 anos, já estava a seu lado a preparar a massa. Cada fornada, de cerca de 20 pães, era a subsistência diária para a família.

Seguia e ainda preserva os segredos da mãe. O preparo começava na noite anterior com a preparação do fermento que, por vezes, pedia emprestado aos vizinhos. No final da cozedura, uma tradição que era quase sempre cumprida: assavam-se umas batatas pequenas e os tabuleiros cheios eram levados para casa na cabeça. Era um peso de responsabilidade para alimentar os irmãos mais novos.

Apesar de ser um tempo que não volta, recorda-se de, por vezes, cozinharem tão tarde que acabavam por adormecer “em cima das pedras”. Mas o “mimo inesquecível” da mãe compensava tudo. No final, preparava uma “bolinha” para cada um dos filhos.

 

Um “rico pão” que a nova geração não quer

Se antes o forno era o amparo diário das gentes, nos dias de hoje é apenas aceso para as festas da vila. Maria Fernanda e Adosinda acreditam que a principal razão do abandono dos fornos comunitários recai no desinteresse das gerações mais novas.

“Quase ninguém quer pão como se cozia antes”.

A tradição está a perder-se lentamente e o futuro é incerto. Como Adosinda diz, “é um rico pão”, cuja tradição se manterá “até quando der”.

 

É um tempo que não volta. Apenas restam as saudades e as memórias emolduradas nas paredes do forno. São vestígios silenciosos de uma vida comunitária que quase desapareceu, mas ainda resiste nas mãos de duas aldeãs. Até quando?

 

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