“Concluí a Vuelta apenas para me despedir”

Créditos: Álvaro García
Foi um fim de carreira inesperado aos 25 anos e a certeza chegou durante a Vuelta. Nuno Bico foi obrigado a parar devido a um problema numa artéria ilíaca. Nesta entrevista, o antigo ciclista, licenciado em Engenharia Mecânica pela Universidade do Porto, deixa o testemunho de alguém que teve de aprender a recomeçar, depois de anos de investimento na modalidade.

Como foi descobrir o problema na artéria?

Foi duro, é sempre um choque ter noção de que uma pessoa é doente de nascença. Mas por outro lado, também foi um alívio, porque eu toda a vida tive uma dor de mal-estar, um desconforto que eu não sabia justificar. Constantemente, quando andava de carro, não conseguia ir sentado direito, tinha que conduzir ligeiramente levantado, por causa dos efeitos desse bloqueio na artéria, e o mesmo acontecia em algumas corridas onde me sentia fisicamente ótimo e outras em que tinha um tremer de perna, falta de força. Não foi imediato o diagnóstico deste problema, só ao fim de vários exames. Foi um alívio ter uma justificação para um conjunto de sintomas quem ninguém, nem eu nem os médicos, fazíamos bem ideia de onde vinha.

O problema acabou por não estar diretamente relacionado com o desporto alta competição? Já vinha de antes?

Eu já tinha isto comigo, uma malformação. A artéria deveria ter um formato e passar num sítio e ter uma largura que não tinha. Obviamente que eu iria descobrir, provavelmente, com 40 ou 50 anos, se não tivesse seguido a prática desportiva e levasse algum hábito de tabagismo, algum consumo regular de gordura, pouco cuidado e pouco desporto, não é?

Nos últimos anos têm surgido alguns nomes conhecidos no pelotão internacional com problemas idênticos. Porque é que este problema está muito associado ao ciclismo?

A posição na bicicleta está associada a este problema, embora as artérias tenham alguma elasticidade. No ciclismo, o posicionamento do corpo na bicicleta é de mais ou menos
de 90º dobrado. E com toda a intensidade faz com que estes problemas possam surgir porque além do débito de sangue ser altíssimo, a pressão na artéria também é muito maior.
As novas bicicletas tendem a aliviar um bocadinho esta pressão exagerada, porque se formos comparar com o ciclismo dos anos 80 e 90, eles acabavam por pedalar completamente deitados em cima da bicicleta. Por isso, imagino a quantidade de casos que ficou por diagnosticar e de carreiras que acabaram mais cedo, sem sequer saberem o porquê.

Foto: Ralph Spijkers

Acredita que nos próximos anos possam surgir cada vez mais ciclistas com este tipo de problemas, por causa da intensidade com que se corre atualmente?

Acho que a probabilidade vai estar muito parecida. A medicina vai estar muito melhor e os testes das posições na bicicleta vão estar muito melhores. Isto vai começar a ser um fator em conta e eu acho que até mesmo havendo ciclistas a sofrer deste problema, a
cura ou uma solução vai surgir. Com muita pena minha, não surgiu na minha geração, mas há de surgir numa geração futura e espero eu, que outros grandes ciclistas não fiquem pelo caminho por causa disto.

Porque é que o depois da operação, o rendimento do ciclista não volta a ser o de antes?

A grande maioria, por exemplo, no caso do Zdeněk Štybar e do Joe Dombrowski, não se devia propriamente a uma dobra na artéria, mas sim a uma calcificação, por causa da posição de modo a ganhar alguma resistência. Ou seja, a artéria ganhou uma espessura e
então o débito sanguíneo seria muito inferior em comparação à outra perna. Aí temos dois pontos, um ponto meio genético/hereditário e o outro, precisamente, por culpa do
ciclismo. No meu caso, com a intervenção cirúrgica naquela artéria é cortada a parte da artéria que está errada e as outras partes que estão bem são cosidas. Com isso vai-se formar uma espécie de cicatriz em anel à volta do tubo. Ou seja, embora eu tivesse resolvido o problema da dobra, de repente essa solução acaba por ser um novo problema.

A Vuelta foi o ponto final da carreira. Esse término foi por causa de todo o esforço e desgaste que trouxe?

Não. Eu entrei ótimo na Vuelta. Tinha vindo de uma corrida espetacular na China, onde houve uma preparação ótima, mas ao fim da primeira semana da Vuelta, os sintomas agravaram-se muito. E aí consultei o médico da equipa que me disse: “Nuno, se os
sintomas estão a voltar, acho que tu próprio sabes o que é que se está a passar. Eu não acho que deva operar-te outra vez, porque vais andar a toda a tua vida no mesmo”. Quando recebi essa notícia, a minha parte psicológica saiu da equação e então fiquei, concluí a Vuelta apenas para me despedir profissionalmente, já sem nenhum tipo de ambição por resultados. Já só queria mesmo chegar ao final para ir para casa e não ver mais a bicicleta à frente.

As equipas têm psicólogos a trabalhar diretamente com os ciclistas?
Sim, têm, mas mediante a vontade do ciclista. O trabalho do psicólogo só é bem feito se a pessoa quiser e tiver a noção de que realmente precisa e, no final, quer trabalhar e usufruir das vantagens disso. Eu lembro-me que, na minha primeira equipa no
estrangeiro, tínhamos um psicólogo e logo na pré-época com testes psicotécnicos e testes de avaliação de resposta em situação A, B e C, eles traçavam logo um perfil de cada atleta e, com isso, um acompanhamento diferente, mais personalizado.

Quando percebe com 25 anos que tinha que acabar a carreira na qual trabalhou desde novo, questionou-se sobre o que ia fazer agora?
Eu questionei-me várias vezes sobre isso e acho que é uma questão mais fácil de responder aos 25 do que aos 18. Acho que ninguém aos 18 sabe o que é que quer fazer. E aos 25, já com alguma experiência de vida e algum dinheiro, acho que já se viveu um bocadinho para se entender no que é que gostaria de profissionalmente investir. Acho que aí a resposta foi bastante mais fácil e acho que cada dia que passa é mais fácil.

Foto: Romina Mooren

Quando estava em competição e do que viu, acha que os atletas se vão preparando para o pós-carreira?

Não, acho que não. Eu sinto que o ciclismo e o desporto em geral vivem numa bolha muito própria de estilo de vida, de alimentação, competição, até de alguma linguagem de calão para se referir, no nosso caso, aos componentes da bicicleta, a dores, a pernas,
etc. E, às vezes, a passagem disso para o mundo “real” não é uma transição nada fácil.

Deviam ser os próprios psicólogos a trabalhar com ciclistas o pós-carreira?

Sim, mas acho que mais do que um psicólogo, deve ser um trabalho do próprio agente do ciclista que devia recomendar onde o ciclista devia aplicar o dinheiro. Acho que aí já não é um conselho só do psicólogo mas sim de quem negoceia realmente o contrato do
ciclista e precisamente pensar no que o ciclista pode vir a fazer no futuro. Também existem associações de ex-ciclistas que podem ajudar. Os ciclistas também têm opção de ir descontando dinheiro para um fundo, ao qual podem recorrer no final da carreira. Esse fundo disponibiliza o dinheiro para um fim de carreira inesperado, para que o ciclista possa investir numa empresa ou para tentar começar alguma coisa. No caso do futebol, vários atletas acabam por ficar em cargos ligados aos clubes.

No ciclismo é mais complicado por causa da oferta?
Sim, uma equipa deverá ter 30 ciclistas e as equipas deverão ter 4 a 5 diretores, ou seja, é um rácio de um para seis, mais ou menos. E, na verdade, sim e não. Existem várias maneiras de ficarmos ligados como a organização de eventos, grandfondos, treinadores
a título individual. Acho que existem várias possibilidades, se a vontade for essa.

No caso do Nuno Bico houve a possibilidade de permanecer na modalidade?

Eu tive a hipótese de ficar logo imediatamente a sair a notícia, mas a minha opção e a minha resposta foi negativa, precisamente porque ainda estava na fase de luto. Eu já ponderei várias vezes em ceder, mas a vida profissional está noutra área e não acho que
deva esquecer.

Que conselhos deixa às atuais e a próximas gerações de ciclistas?

Eu era um miúdo bastante obstinado e viciado em ciclismo. Vivi a minha infância e adolescência de uma maneira diferente. Com isso, eu vivo bem, não tive problema nenhum e, sobretudo, não me arrependi nada mesmo quando tive de deixar a modalidade aos 25 anos. O meu conselho para as gerações futuras, atuais, mais jovens,
é que se dediquem, sejam o melhor que consigam, mas ao mesmo tempo sempre que puderem descontrair, desfrutar, sair à noite, agarrarem-se a isso porque é preciso também uma boa dose de realidade, para quem está no mundo do ciclismo.

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