Há 10 anos a descentralizar a dança contemporânea em Portugal

Na rua do Peso da Lã, a entrada da companhia de dança Kayzer Ballet se faz discreta. Mas ao entrar, do rés-do-chão, já se ouve as vibrações de arte a ser aperfeiçoada. Lá dentro, Ricardo Runa, o diretor artístico e criador da companhia, às suas bailarinas se aquecerem com uma aula de balé. Há não muitos anos atrás, era ele ali, no lugar dos seus alunos, aprendendo a ser o melhor dançarino que podia ser. 

Natural da Covilhã, Ricardo desde muito novo tinha gosto pela dança. Começou com aulas de balé no A.T.L da sua mãe e, alguns anos depois, foi estudar na Escola de Dança do Conservatório Nacional em Lisboa, onde se profissionalizou em dança contemporânea e dança clássica.  “Foi fundamental para me tornar aquilo que hoje sou, enquanto criador, enquanto diretor, profissional da dança”, conta Ricardo sobre a sua passagem pelo Conservatório. 

Sem saber o que o futuro traria, aos 18 anos de idade percebeu que a dança era uma paixão que de fato podia ser a sua vida profissional, uma possibilidade que era palpável. Com muito esforço e dedicação, seguiu o caminho para tornar aquilo uma realidade. 

Em 2013, Ricardo mudou-se para os Estados Unidos para dançar no Gwinnett Ballet Theatre, uma companhia sem fins lucrativos, em Atlanta. Passou um ano a apresentar-se lá, uma época que diz ser inesquecível. 

Essa experiência fez nascer uma faísca dentro de Ricardo, pois lá ele via diversos bailarinos que tinham imenso talento, mas não tinham a oportunidade de mostrar o seu trabalho, pois as companhias exigiam experiência que a maioria dos bailarinos não tinha.  “Foi uma época muito bonita da minha vida, que me ajudou a criar coragem para criar a minha própria companhia”, recorda acerca do ano em Atlanta. 

Em 2014, retorna a Portugal e decide criar a sua própria companhia de dança, com o objetivo de dar oportunidades a novos bailarinos a desenvolverem-se e abrirem portas para o seu futuro profissional. Ele também comenta que na época, a dança era muito pouco desenvolvida em Portugal, com poucas companhias e muito centralizada em Lisboa e Porto. Portanto o outro objetivo da companhia era descentralizar a arte e a dança, trazendo ela de forma profissional para o interior, aqui na Covilhã. 

Assim nasce o Kayzer Ballet, nome inspirado na força do imperador, a “força de lutar pelas artes, lutar por esta arte em particular que é tão bonita e tão única”.  

Tinha 23 anos quando abriu a companhia e, apesar da inexperiência e as dificuldades que se apresentaram, Ricardo diz que sempre teve “essa veia de empreendedor, até porque venho de uma família de comerciantes” e isso trouxe uma coragem para avançar na luta constante que fez este projeto crescer e tornar-se numa referência como é atualmente. 

De volta ao estúdio, Ricardo observa seus alunos durante a aula de balé, mas o trabalho não para. Com o portátil no colo, ele faz seus negócios, mas quando uma aluna erra um passo, ele chama-a ao canto e dá dicas, simples e diretas, que dão à bailarina a vontade de tentar de novo, melhor, aperfeiçoada. 

Uma de suas alunas, Chiara di Giulio, veio da Itália para participar da companhia e, segundo ela, foi algo que sem dúvida valeu a pena. A melhor parte de trabalhar com Ricardo é se inspirar naquela “força para continuar e nunca parar de crescer, sempre procurando novas sensações. A orientação dele me inspira a ir além dos meus limites”, explica Chiara. 

No seu dia a dia, Ricardo sente-se inspirado em poder ensinar a ajudar as alunas e alunos de tantos lugares diferentes, “todos os dias me apaixono por esta profissão” diz ele sobre a oportunidade de conhecer novos profissionais tão talentosos. É importante a oportunidade de pessoas de fora que vêm até a Covilhã para aprender: “A dança une culturas, religiões, gerações, une tudo. A dança tem um poder enorme de construir pontes entre sociedades” e diversidade no seu elenco comprova isso. 

Quando a aula de balé acaba, começa o seu trabalho como coreógrafo da nova apresentação de dança contemporânea. Ricardo explica que o seu trabalho como diretor artístico é multidisciplinar: “um diretor tem de ter uma linha de pensamento e de estética para aquilo que pretende no seu trabalho. É explorar e encontrar coreógrafos, ou através da minha própria coreografia, encontrar uma linha de movimento artístico que seja coerente com aquilo que são as ideias de direção”. 

Mas seu trabalho vai para além disso, ele também é mestre de bailado da companhia, dá aulas todos os dias, é coreógrafo residente e “as vezes psicólogo e mentor também”, comenta, rindo. 

O professor de balé José Vieira, que dá aula no Conservatório Nacional há mais de 30 anos e foi professor de Ricardo, não hesitou em vir ajudar o seu ex-aluno desde o início da companhia. Agora, já trabalham juntos a mais de 10 anos. José senta e assiste Ricardo assumir a turma de bailarinos. Conta que sente um misto entre “prazer e o privilégio de ter alunos que sigam a carreira”, ainda mais Ricardo, que abriu esse espaço tão importante. 

Ricardo Runa diz sentir-se concretizado com o que criou até aqui com o apoio de todos os bailarinos, coreógrafos, professores, ensaiadores, com toda sua arte e talento. Nadando muitas vezes contra uma maré forte, criou um espaço de partilha e de sentimento importante, cá na sua terra: “é isso mesmo que me representa, essa força, essa garra de estar no interior do país, onde ninguém iria imaginar que existiria uma companhia de dança que pessoas de todo mundo procuram”. 

 

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