Livros, sopas e sapatos ganham vida nova na Covilhã

Economia Circular e o combate ao desperdício fazem casa na Covilhã. Iniciativas envolvem altruísmo de voluntários, mas também negócios preocupados com a sustentabilidade e consumismo.

No armário, aquele casaco antigo que não é vestido há muitos invernos, na prateleira, livros e livros pegando pó, lidos anos atrás. No lixo da cozinha, o resto de almoço que sobrou e não vai ser comido. Abandonados, esquecidos ou jogados fora, há como dar uma nova vida para esses e muitos outros produtos da nossa sociedade de consumo. 

Agora, na Covilhã, livros que foram lidos há um, dez ou vinte anos atrás, têm uma nova chance de serem tocados. A Tertúlia Livraria & Café nasceu com o intuito de trazer algo que faltava na cidade, um lugar para comprar literatura acessível, de segunda mão que, com um sopro para tirar a poeira, podem ser lidos mais uma vez. Para ele, livros têm que ser lidos mais uma vez: “Acho um pecado você ler um livro e deixá-lo parado. Isso é um aborto da vida do livro. Parece que ele morre ali. Então, trazendo para cá, conseguimos fazer isso chegar em outras mãos”

Sustentável e independente, eram duas das principais características que Marcos Leite queria para a sua loja. A noção de reutilização e sustentabilidade andam sempre de mãos dadas e para ele o trabalho que a Tertúlia faz, mesmo que pequeno, é “importante para a questão de reutilização dos recursos, para a questão de poluição e do planeta, enfim, sem radicalismo. Sem radicalismo, porque é preciso ter esse equilíbrio”.  

Até aos sábados, Marcos abre a Tertúlia e recebe clientes para um café

Para ele, o desequilíbrio é produzir e vender muitos livros novos, que vão ficar parados nas estantes e depósitos, enquanto ainda mais livros são produzidos: “isso para mim é um problema ambiental”. Apesar de um certo estigma que existe em comprar coisas usadas, Marcos defende que não é uma alternativa de menos qualidade, por isso argumenta: “Nós compramos automóveis usados, por que não podemos comprar livros usados, roupas usadas?  Você lava a roupa, a roupa está limpa, está apta para ter uma vida útil maior”.

Carolina Crisóstomo é alguém que não poderia concordar mais com essa afirmação, ela é dona da Echoes Second Hand, loja de moda em segunda mão e tecidos reusados para costura. Segundo a aluna de design industrial, o seu negócio tem uma ligação direta com aquilo que gosta de estudar, a “sustentabilidade no design e reaproveitamento de tecidos, então juntamos essas duas coisas”. 

O nome vem da ideia de ecoar: “Porque é o que vai e volta. Não é? da sustentabilidade da roupa que tá sempre em ciclo”. Mesmo que as roupas não sejam vestidas novamente, na Echoes isso não significa que é o fim da vida do tecido: “O que não tem estado para ser vendido e nem para ser doado, porque isso também acontece, nós não vamos jogar fora. Eu luto contra o descarte de resíduos têxteis”. 

Vitrine da Echoes Second Hand & Sustaintability

São negócios familiares, sustentados pelo modelo de economia circular, uma ideia de modelo económico cada vez mais popular, que surge como alternativa à economia linear e à sociedade de consumo, que cria e descarta, esgotando os recursos naturais, criando excesso de lixo e aumentando a poluição cada vez mais. 

Segundo a Agência Portuguesa do Ambiente, em 2017, cerca de 200 mil toneladas de resíduos têxteis foram para o lixo em Portugal. A solução para evitar o descarte de peças que não estão mais aptas a serem usadas é uma técnica chamada upclying, como explica a aluna de Mestrado em Design de Moda, Giovanna Nunes: “É uma técnica que consiste em reaproveitar materiais já existentes para criar peças novas, uma abordagem inovadora e sustentável que desafia o designer a criar a partir de peças já existentes, a fim de aumentar o ciclo de vida do produto”. 

Na Echoes, Carolina vende tecidos para upclying por 50 cêntimos ou um euro, para alunas como Giovanna fazerem o seu trabalho. O que seria mais um dos milhares de toneladas de resíduos jogados fora, ganha vida nova e evita o desperdício. A produção e o consumo desenfreado da sociedade moderna, vende o que pode e descarta o que sobra, mesmo fazendo falta à mesa de muitos.  

Os sapatos são simbólicos: foram feitos para circular

Mas, na economia circular, nem tudo são negócios e há espaço para voluntariado. Por isso, para 200 pessoas na Covilhã não faltará sopa à mesa. Temos muita sopa, diz Maria da Luz Batista, enquanto preenche potes reutilizados: “Deve estar boa. Tem aspecto, ela completa com um sorriso. Em 2011, uma organização sem fins lucrativos começou a recolher e distribuir alimentos aos necessitados, em Lisboa. Quatro anos depois, chegou à Covilhã. 

Maria da Luz, voluntária há quase dez anos, é coordenadora do núcleo local da Refood e não para o trabalho enquanto explica os dois pilares do projeto, que são o combate ao desperdício e a parte social. “Já que não queremos desperdiçar, temos de canalizar as coisas para isso”. Se não fosse pela Refood, aquela sopa teria ido para o lixo. 

Voluntários vêm direto da aula para ajudar a organizar a comida

Diferente da Tertúlia e da Echoes, não é um negócio que está por detrás da Refood, mas nem por isso deixa de ser um modelo exemplo de economia circular, mais para um lado de sustentabilidade e serviço social, sem pretensões de fazer lucro. 

De segunda a sexta, cinco equipes de voluntários saem nos seus carros em direção a cerca de 50 restaurantes e mercados da Covilhã, que têm um acordo com a Refood: “Os restaurantes fazem a comida para o dia, certo? E não conseguem vender tudo. Nós vamos, eles guardam e trazemos. Metemos no frio e ao outro dia distribuímos. Geralmente, deitavam tudo fora. Neste momento não, nós vamos recolher e estamos a aproveitar. Ao mesmo tempo ajudamos as pessoas”, explica a coordenadora local. 

No momento, aproximadamente 120 voluntários, de todas as idades, se dividem entre os dias da semana para a ajudar. O mínimo são duas horas de voluntariado por semana e, como a maioria dos voluntários trabalha ou estuda, cada um faz o que pode para ajudar um pouquinho. Adelaide Reis é uma delas, trabalha como secretária na FAL, e vem direto da UBI para ajudar na Refood. Para ela, formas sustentáveis de ajudar estão no sangue português: “Porque nós somos um pouco especialistas em ter um plano B, fazer um plano B. Nós somos os principais que estão a reaproveitar isto tudo”. 

Mural de voluntários na Refood Covilhã

O reaproveitamento e a sustentabilidade são pilares importantes da economia circular, mas como a Refood mostra, as coisas vão além do económico, a ideia forte de comunidade está presente em todos os personagens. Na Echoes, a moda é o fator que movimenta a loja, que é algo pelo qual Carolina sempre teve apreço e inspirou ela a criar o seu negócio. 

A dona da Echoes explica que a moda é uma forma de expressão individual e, por isso, é uma grande perda quando as pessoas não têm acesso a ela: “As pessoas veem a moda nas grandes passarelas e pensam: ‘Nossa, eu nunca vou usar uma coisa dessas, eu não tenho condições de usar isso’. Isso é relativo, porque você pode criar o seu próprio look com peças que você encontra, seja em loja de roupas em segunda mão, no armário do seu avô, no armário da sua avó”.  

A loja não só dá oportunidade de a comunidade poder expressar-se melhor de forma mais acessível, mas sempre trabalhou com a parte cultural e comunitária: “Desde o nosso princípio, nós tentamos organizar workshops, fazemos algumas coisas até do lado de fora, participamos ativamente do comércio local”. 

Na Echoes, o atendimento e acolhimento é prioridade

O pequeno negócio permite uma proximidade maior com os seus clientes, existe um carinho maior no atendimento. Segundo Carolina, é um diferencial fazer com que as pessoas se sintam bem-vindas, algo que talvez não seja tão comum em grandes lojas de roupas: “Eu adoro conversar com as pessoas. Acho que ela [a Echoes] não seria a mesma coisa sem essa parte mais humana, sem essa pegada mais cultural”. 

Na Tertúlia, isso também é verdade. Não é só livraria, é uma “livraria café, porque o café é muito presente na vida do português. Ele é um evento diário na vida do português, às vezes bem mais do que a leitura. Combinam perfeitamente, são bens complementares”, Marcos explica. 

Para ele, a Tertúlia “vai além do conceito de uma loja, onde a pessoa troca ali um bem por um dinheiro”, e procura que a livraria faça jus ao nome, sendo um ambiente de convivência e de comunidade: “[Os clientes] voltam, vêm beber um café, vêm conversar, ou vêm estudar, passar algumas horas do dia, fazer algum trabalho na faculdade”. Para ele, essa é a parte mais gratificante de ter um negócio. 

Nestas estantes, os livros têm uma segunda chance de serem lidos

São empresas familiares e uma família de voluntários, com diferentes meios eles ajudam, mesmo que aos poucos, uma cidade como a Covilhã a desperdiçar um pouco menos. Com a oportunidade de conhecer esses lugares, os clientes e voluntários se conscientizam um pouco mais sobre a sustentabilidade, explica Maria da Luz: “Eu acho que as pessoas que aqui estão já têm muito este conceito do desperdício, mas não estou a falar só de alimentos, até de outras coisas. E há sempre a tentar reaproveitar para qualquer coisa”. 

A sustentabilidade é um trabalho dos poucos e dos justos, é difícil ir contra a corrente da sociedade do consumo. Mas, mesmo pequenos, o seu trabalho já é enorme e, aos poucos, faz a diferença. É algo que vai além deles mesmos, finaliza Maria da Luz: 

“Temos que fazer alguma coisa pelos outros, não é só por nós” 

Pode ler também