Portugal é conhecido pelos seus variados pastéis que refletem as tradições e histórias das diferentes regiões do país. Com distintos modos de preparo, alguns salgados e outros doces, os pastéis portugueses são verdadeiros símbolos nacionais. Entre os mais emblemáticos, destacam-se o pastel de feijão, o pastel de Vouzela e o famoso pastel de nata. Do norte transmontano, surge o pastel de Chaves, amplamente conhecido em todo o país. Com o seu recheio de vitela, encanta todos os que visitam a região. O pastel de carne, por sua vez, atravessou o rio Douro e renasceu na Covilhã. Com as suas particularidades únicas, o pastel de molho tornou-se uma expressão autêntica da cultura da cidade serrana.
Com origens diferentes, a história destas duas iguarias é contada de geração em geração para que nunca seja esquecida. Ninguém sabe verdadeiramente a história do pastel de Chaves, mas reza a lenda que uma senhora andava com um alguidar à cabeça a vender porta a porta a iguaria transmontana. A casa mais antiga de produção da cidade fez na época um contrato com a autora dos pastéis para que lhe dessem a receita e em troca ofereciam-lhe uma libra em ouro. Durante muito tempo os fabricantes juntaram esforços para o reconhecimento do pastel, a nível nacional e internacional, pois o desejo dos flavienses era que fosse unicamente fabricado na região. Assim, há nove anos, a especialidade recebeu a certificação IGP.
Localizada no centro histórico de Chaves, perto da Torre de Menagem, um edifício de cores vibrantes e o cheiro a pastel chama a atenção de quem por ali passa. A Pastelaria Maria não era um negócio de família, mas após 30 anos de dedicação aos pastéis, Lídia Guedes acabou por ficar com a loja tornando-a num legado de filhos e pais. Apesar de a loja ter movimento durante todo o ano, no verão, com a chegada de emigrantes e de clientes de toda a parte do mundo, produzem mais de 1500 pastéis por dia, não só para a loja, mas também para venda exterior com certificado do produto congelado e data de validade de seis meses.
Há quem venha propositadamente a um dos pontos mais extremos do norte de Portugal para provar a iguaria flaviense. Contudo, para Tina Sousa, com 20 anos de experiência e Liliana Guedes, que se dedica ao pastel desde 2020, o segredo está na produção diária com azeite de qualidade, carne de produção transmontana, margarina que deve ser industrial e o alisamento da massa passada três vezes pelo laminador. Ambas fazem como a tradição manda, mas com a ajuda de máquinas. Não é por isso que o sabor é diferente, pelo contrário. Os equipamentos apenas contribuem para o processo ser menos demorado, para a produção ser em massa e para facilitar o procedimento que, antigamente, era feito por força dos trabalhadores. Embora mantenham a receita original, houve quem acrescentasse condimentos como noz-moscada, presunto ou chouriço picado para atribuir um pouco mais de sabor ao pastel de Chaves.
É o caso dos Prazeres da Terra que valorizam um recheio mais intenso e uma abertura que desfolha o pastel de uma forma que lhe atribui um formato diferente do habitual. Contudo, têm um caderno de encargos a seguir no qual não podem incluir ingredientes que não estejam estipulados. Na verdade, tudo é controlado milimetricamente pelas entendidas reguladoras de segurança alimentar. O picado não pode ultrapassar as 13 gramas e cada pastel tem de pesar 65 a 70 gramas não podendo ficar nem mais pequeno, nem maior. Enquanto “guardiões de uma memória coletiva” reconhecem as matérias-primas da região e fazem o pastel de Chaves com o tamanho normal, mas também como aperitivo de 30 gramas.
Jorge Carvalho não tinha ninguém na família no ramo dos sabores transmontanos, mas juntamente com o amor pela profissão e com os estudos acerca do pastel e da massa folhada, decidiu abrir portas em 2006, no coração da cidade. Ainda que não fabriquem pastéis para consumo imediato, armazenam-nos em arcas de congelação a menos de 18 graus e há clientes que levam o pastel fresco, embalado numa esfera protetora para ser terminada a confeção em casa.
Como Cátia Gonçalves, responsável pelo departamento de qualidade, refere a magia do pastel “está nas mãos de quem o faz e no amor que as pessoas põem no produto” o que difere os produtores, visto a massa e o recheio não ser algo complexo. Além disso, a essência do saber não é assim tão fácil como parece porque “é um processo ainda muito manual que requer muita perícia”. O que particulariza este comércio de tantos outros é a aposta na qualidade e no rigor através de análises frequentes aos produtos e um controlo rotineiro na higienização, em superfícies, bancadas e tabuleiros. Essas avaliações são realizadas por laboratórios externos tanto na parte microbiológica, como à conformidade do produto e ao aspeto nutricional.
Se por um lado, a Dona Maria é um negócio de menor dimensão, vende para o estrangeiro e para 20 cafés locais. Por outro, os Prazeres da Terra são uma fábrica direcionada para o consumo flaviense e ainda para a distribuição em grandes superfícies, através de uma transportadora subcontratada, como Continente e Pingo Doce. Por dia produzem 2000 mil pastéis e de 2022 a 2023 a produção dobrou.
Contudo, quem fez pastéis caracteriza o trabalho numa palavra: custoso. Fernanda Pereira, de 54 anos, trabalhava das 8:30 às 18 horas, e começou na secção das massas e passou para a aplicação da carne no pastel, para a cozinha cortar carne e fazer o picado nas panelas. Mesmo tendo sido “uma experiência bonita” que remete para as raízes flavienses, “é muito trabalhosa e pesada” na qual todos eram “polivalentes” em todas as fases de produção. Quando questionada sobre o possível regresso na área, Fernanda diz que “é um caso a ponderar” visto a fábrica em que trabalhou ser “muito grande com muito pessoal” o qual não estava satisfeito com a qualidade de vida que este trabalho viabiliza.
Paralelamente, José Martins também foi padeiro, confecionou pastéis durante dois anos e tinha um gosto pela fabricação até à produção. Porém, o facto de o vencimento ser limitado “para o trabalho que implica” fê-lo voltar costas à profissão. José recorda-se que os flavienses não querem trabalhar nesta especialidade por ser laborioso e exaustivo. Por isso, “a grande parte das pessoas que se sujeitam a este trabalho” não conseguem encontrar um outro emprego noutro segmento, o que inclui pessoas de mais idade, alguns jovens e emigrantes. Segundo o próprio, a arte do pastel de Chaves consiste na quantidade certa de margarina que desenvolve um sabor equilibrado e uma laminação bem folhada.
Seja no pequeno-almoço com um café, seja ao jantar a acompanhar uma sopa ou uma salada, o pastel de Chaves é perfeitamente adequado a qualquer faixa etária e a qualquer época do ano. Na Covilhã, a tradição quase se repete. Os covilhanenses comem o pastel de molho como forma de substituir a sopa. Neste sentido, passamos da terra flaviense para a Covilhã a fim de conhecer os pastéis de molho.
Quando a indústria se instalou na Covilhã, milhares de pessoas vieram para a cidade em busca de emprego. Como só podiam regressar a casa nos fins de semana, a comida ou a falta dela passou a ser um problema. Assim, com uma origem humilde, os pastéis de molho foram originalmente criados para suprir uma necessidade: a fome dos operários na década de 1920. Ao contrário da sopa, que deve ser consumida no máximo de três a cinco dias, o pastel podia ser conservado durante semanas depois de confecionado, o que acabava por ser menos uma preocupação para os covilhanenses. Filipe Martins, proprietário da Padaria do Centro, recorda-se de que no tempo da mãe “antes de ir para a cama era um pastelzinho no molho e estava o jantar feito”.
Conforme Teresa Fazenda, reformada de 75 anos, este é um pastel cheio de história e “é medalha de ouro da Covilhã”. Os portugueses espalhados pelo mundo, em particular os covilhanenses, deram a conhecer esta iguaria a diferentes povos. Inclusive Teresa já mandou “dezenas e dezenas para a França e a Alemanha”.
Apesar de esta ser uma das suas grandes paixões, Teresa teve de interromper a produção de pastéis devido a uma prótese no joelho. Desta forma, foi ao lado da sua amiga de longa data que, recorrendo a fotografias do telemóvel, Teresa regressou ao passado. “Era o meu hobbie”, referiu com um sorriso no rosto, com as marcas de uma longa vida de luta e labor. Após regressar do trabalho e deitar os filhos, era na cozinha que dedicava o resto do tempo até o cansaço a vencer. Ensinada pela sogra, desde cedo que se dedicou à venda do pastel, como renda extra, sendo uma das muitas pessoas que os vendiam. “Na nossa Covilhã havia 20-30 pessoas a fazer os pastéis e só aqui na nossa rua havia 5”. Seguindo a tradição, com os ingredientes certos, Teresa iniciava as suas horas intermináveis na cozinha.
Após feita a massa com água, farinha e sal, passa a ser estendida sobre a mesa, ficando como uma toalha fina. Depois é cortada em panos e pincelados com margarina e azeite para serem colocados uns sobre os outros. Uma vez enrolados, são cortados em rolinhos. Com o formato feito é a vez da preparação da carne, um dos principais elementos da iguaria pois “o selo do pastel é a carne”. A vitela é a carne de seleção e quando cozinhada junta-se ao refogado azeite, cebola, colorau, alho, louro e ervas aromáticas. Após 15 minutos com a consistência desejada, forma-se uma bolinha de carne, colocando-as no centro da massa e depois é fechada. Ir ao forno é a última etapa antes da degustação desta iguaria covilhanense. A par do pastel, o molho caracteriza esta especialidade. Feito à base de água, sal e açafrão, a infusão adquire uma cor amarelada. Apesar de poder ser consumido a seco, como um salgado, o pastel é mergulhado no molho e servido como uma sopa.
Muitos dos negócios dedicados à confeção dos pastéis de molho nasceram com interesse familiar e continuados pelas gerações que as procederem. Alguns embarcaram no negócio pelo gosto, outros pela fuga à vida académica. Foi o caso de Fernando Esteves cujo padrasto trabalhava no ramo e, para não continuar a estudar, ingressou na profissão. Com uma idade tenra, começou a trabalhar com 13 anos e pela paixão nunca largou a profissão. “Até à reforma vou fazer esta atividade é aquilo que gosto de fazer”.
À semelhança dos pastéis de Chaves, também os pastéis de molho são o sabor de casa que os emigrantes mais procuram.
Contudo, a falta de interesse dos mais jovens em dominar a confeção dos pastéis e continuar esta tradição que representam Chaves e Covilhã é algo a lamentar. “É um legado que deve continuar no futuro, é pena não haver gente que queira aprender”, referiu o pasteleiro Filipe Martins. Atualmente a produção dos pastéis está na sua maioria ao encargo das pastelarias, com um preparo industrial, fortemente mecanizado, sem a atenção e cuidado que lhes eram atribuídos quando feitos manualmente.
O processo de confeção do pastel da Covilhã é semelhante ao de Chaves. Os pastéis de molho, no entanto, além de apresentarem um formato diferente e o recheio ser menor, o molho é um complemento indispensável que marca a singularidade da especialidade. Além disso, a maior laminação do pastel faz com que a massa seja mais fina e com um folhado menos estaladiço.
O facto é que os pastéis de Chaves e de molho percorrem as bocas dos portugueses. Histórias vivas são transmitidas de gerações para gerações, como forma de revelar a essência da cozinha portuguesa e o orgulho regional que atrai os olhares do mundo.