“Eu à noite deitava-me e dava conta, assim, de muito silêncio e então pensava: deve estar a nevar”. Às vezes, João Carvalheiro, acordava a mulher para ir ver à janela se confirmava. Outras vezes, esperavam que a manhã caísse sobre a cidade como a neve durante a noite.
Explica que com a neve vinha um silêncio diferente e que agora nunca mais se ouviu. A neve caía “maciazinha” noite adentro e fazia com que não se ouvisse nada. João ainda se lembra do silêncio “fantástico” que era.
As memórias dos sentidos auditivos ficam, mas não são as únicas. O tato também era desafiado. O senhor Viseu, assim conhecido por todos na Covilhã, ainda se lembra do tempo em que não havia luvas para ninguém. “Esfregávamos a neve com as mãos e depois o sangue começava a pelar e, pronto, não tínhamos cá frio”.
Agora, com 83 anos, lembra-se como se fosse ontem das brincadeiras de criança. Dos bonecos de neve, das bolas de neve atiradas e das tábuas que arranjavam para ir até à descida da saudade e deslizar por aí abaixo.
O que não falta nesta cidade são subidas para uma criança imaginar pistas de gelo improvisadas e o Carlos Raposo ainda se lembra, no tempo dele, de ser a avenida 25 de abril o palco improvisado para esqui. Numa altura em que a escola era um local rígido e cheio de regras, a neve trazia a grande alegria de ficar a brincar na rua.
Mais do que ruas forradas a neve, como era o caso daquela onde, ainda hoje, tem a sua barbearia, ou fazer gazeta à escola, Carlos lembra-se da sua mãe quando pensa na neve. Recorda-se de a ver a colocar umas meias nas botas para não escorregar com a neve até chegar ao trabalho na Transformadora de Lãs. É uma memória que ainda hoje o marca.
Não era só a mãe de Carlos que recorria a esta técnica. É algo de que todos se lembram na Covilhã. A neve começava macia, mas com a noite logo se tornava escorregadia.
As peúgas de lã eram muitas vezes adquiridas pelas senhoras com João. Tinha a sua retrosaria, Loja do Povo, um pouco mais acima de onde está hoje. Era uma “linha reta” ao mercado e para não perder fregueses durante a neve tinha de se abrir caminho. Com as tábuas que dão forma aos molhos de tecido enrolados começavam a raspar o chão para as pessoas os poderem visitar. “Chegávamos a ter neve a 20 ou 25 centímetros de altura”, lembra o lojista.
O senhor Viseu chegou a auxiliar muitas das pessoas que se aventuravam a tentar descer as ruas. Chegava a haver pernas partidas, principalmente nas mulheres, conta. “Íamos para as escolas quando chegamos tínhamos de estar a gramar até às horas em que pudéssemos almoçar e ir a casa. Tínhamos que estar à braseira para enxugar os sapatos”. São as memórias de outros tempos em que o calçado passava por “um bocado de pano” que era colado com solas.
Depois dos tempos da escola, Viseu passou a trabalhar nas fábricas ainda jovem e mesmo assim “gostávamos de estar uma semaninha a brincar a neve”. A fábrica onde trabalhava era uma daquelas com geradores. “Hoje já não se vê fios no ar, mas na altura era tudo assim”, partiam-se com o acumular da neve e lá ficam os geradores sem funcionar.
Eram dias e dias até que a neve derretesse rua abaixo. João Carvalheiro ainda se lembra de um nevão em dezembro de 62, o inverno levou-lhe primeiro a avó e dez dias depois o avô. Lembra-se do nevão terrível que enchia as ruas com mais de meio metro em neve e como passados dez dias essa neve ainda cobria a cidade.
O lojista recorda-se de ver a neve a cair no café Pelourinho, que existiu em tempos junto à camara. Ana Rita Agostinho tem 34 anos e, embora a neve já não apareça há uns tempos pela Covilhã, ainda se lembra de pela janela da sala da casa dos pais ver o chão, as casas e os carros a ficarem todos pintados de branco.
Ainda havia alguma neve nos anos 90 e como qualquer criança a Ana Rita ainda se lembra, entre risos, de ver a chuva cair com alguns flocos de neve na esperança de um dia em casa se avistar. “Nós sempre estivemos em contacto com a neve na serra, era pena não nevar tanto na cidade”.
Dulce Santos também se recorda da primeira vez que viu nevar. Era Natal e devia ter oito ou nove anos quando via a neve cair e passava o dia a brincar nela. Como filha da Covilhã que é, presenciou mais alguns nevões na juventude, mas depois esses começaram a ficar escassos. Quando veio trabalhar para a UBI lembra-se de um nevão “assim jeitoso” que fechou a universidade. Ficou o dia cancelado, porque o regresso a casa já estava complicado com o quanto nevava. “Foi relembrar aquela altura da escola”, diz com um sorriso de lembranças na cara.
O nevar a sério, com uma cidade pintada a branco, já lá vai, mas há ainda pequenos momentos que levam os sentidos a viajar até ao passado da bela cidade neve. Dulce diz que quando cai um granizo forte e as ruas se enchem daquelas pedras de gelo ainda se lembra das ruas de outra altura, enquanto Viseu garante que não foi há muitos anos que voltou a conseguir mandar uma corridinha por cima da neve no parque de campismo.
Aquela cidade neve da música de Amália já é difícil de encontrar sem ser nas memórias de quem aqui cresceu. Nas memórias de Viseu que ainda consegue “ver essas imagens todas na cabeça” das pessoas a descer de esquis em pistas improvisadas enquanto ficava feliz apenas de observar a atividade.
Em Dulce que ainda se lembra dos risos que partilhava com os colegas de escola enquanto comparam as pegadas de cada um na subida até casa, com a neve que chegava abaixo do joelho.
Em João que pegava a mulher pela mão numa manhã em que tinha medo de subir até à loja e lhe dizia “anda comigo” e escalavam as subidas forradas a neve até ao centro da cidade. Em Ana Rita que embora seja a mais nova também suspira quando pensa que já não se consegue lembrar da última vez que nevou na cidade mesmo.
Agora apenas a encosta da serra se pinta de um branco. Como se alguém polvilhasse de açúcar a terra, mas nunca do mesmo manto branco, liso e imaculado de antigamente.