Da ilha à serra: como vivem os estudantes deslocados

1278km separam a Covilhã do Funchal e 1575 a Covilhã de São Miguel. São números irrelevantes para a maioria. Mas profundamente transformadores para quem teve de aprender a viver à distância.

Deixar o arquipélago para trás e aventurar-se no ensino superior no continente é uma experiência marcante para qualquer estudante, mas para os que vêm dos Açores e da Madeira, a geografia aumenta a intensidade da jornada. Atravessar o oceano não significa apenas mudar de casa, mas implica um turbilhão de emoções, onde a saudade da ilha natal se mistura com a excitação de se construir um futuro promissor.

Um Novo Lar a Quilómetros de Distância

“É um sentimento complexo, misto, pessoal e único”. A descrição é de Leonor Castro, estudante de Medicina e presidente do Núcleo de Estudantes das Regiões Autónomas da UBI (NERAUBI) sobre uma mistura complexa de sentimentos e que oscila entre a nostalgia das raízes e a certeza de que um novo ciclo está a começar. A transição, porém, não é fácil: enfrentar uma casa vazia, em contraste com a familiaridade do lar, pode ser um desafio até ao momento em que os estudantes acabam por construir um novo “lar longe de casa”.

A adaptação não se faz de um dia para o outro, tem espinhos. “De facto custa afastarmo-nos do que fora até ao momento, a nossa vida”, partilha Catarina Vieira, aluna de 3º ano de Ciência Biomédicas realçando a dificuldade em se adaptar a uma nova realidade. Mas, a vontade de construir um futuro próprio e a descoberta de novos horizontes impulsionam a adaptação: “Estava a perseguir o alargar dos meus horizontes, os meus sonhos, a minha independência, que infelizmente só é realmente conseguida saindo de baixo das asas dos pais”. Quem o diz é Maria Neto, estudante de 2.º no Mestrado em Gestão, natural de Santa Cruz, Madeira, já está bem habituada a estas andanças, visto estar há 5 anos na Covilhã. “Ir para a Universidade não é só estudar e tirar um curso, mas também aprender quem somos e quem gostaríamos de ser, ao sair da Madeira, daquele que era o meu mundo, consegui descobrir quem é a Maria”.

“Passei a gerir tarefas do dia a dia, como cozinhar e outros afazeres domésticos, o que inicialmente parecia desafiador, mas tornou-se natural graças à boa educação que me foi dada pelos meus pais”, confessa Daniel Câmara, estudante de Engenharia Aeronáutica, natural de Machico, sobre a sua experiência de ter de se tornar mais independente. Estudantes relatam que a experiência de viver no continente permitiu-lhes descobrir mais sobre si mesmos e amadurecer. “O que posso dizer é que o desconforto não é agradável, mas é o que nos faz crescer”, partilha Catarina.

 

As Saudades: Uma Constante na Travessia

A saudade de casa é constante na vida do estudante ilhéu. É de setembro até dezembro e de fevereiro a junho que muitos destes jovens ficam sem ver as suas famílias. É o sacrifício necessário aqueles que não encontram nas Regiões Autónomas as oportunidades para prosseguir os estudos na área do seu gosto.

É no fim do secundário que estes jovens se vêm obrigados a separar de casa e a enfrentar a saudade. Leonor Castro explica que “as saudades de casa são constantes e, ao contrário do que nos querem fazer acreditar, não há uma mudança nem vai ficando mais fácil. As saudades mantêm-se de igual forma ao longo dos anos, nós é que vamos adquirindo ferramentas que nos ajudam a lidar melhor com esse sentimento”. Maria Neto acrescenta que “cada voo Funchal-Lisboa significa deixar uma grande parte de mim para trás e, às vezes, as videochamadas e mensagens não são suficientes, mas é preciso fazer o esforço”.

Mariana Vasconcelos, aluna de 4º Ano de Arquitetura e natural de Machico, Madeira, conhece também esta realidade e aquelas que são as saudades de casa: “Vamos nos habituando a estar longe, longe da ilha, mas a verdade é que as saudades nunca melhoram. É sempre muito difícil quando temos de voltar”. Mas mesmo longe, Mariana tenta, todos os dias, manter-se em casa, mesmo a mais de 1000kms de distância, “de casa à faculdade e de faculdade a casa, e mesmo depois das aulas, todos os dias falo com os meus pais, de manhã e no final do dia. Não é o mesmo que estar em casa, mas vamos nos mantendo ligados.”. E admite “ao contrário de muitos colegas que, felizmente, têm a oportunidade de ir a casa ao fim-de-semana quando têm saudades ou precisam de apoio, nós temos que lidar com isso sozinhos ou com o apoio dos amigos e isso, no início, não é nada fácil”.

No entanto, com o tempo, os estudantes desenvolvem ferramentas para lidar com essa saudade. A certeza de estar a trilhar um caminho próprio, construir um futuro promissor e as amizades que vão florescendo ao longo do percurso atuam como âncoras emocionais.

As visitas à família, quando possível, são momentos preciosos para recarregar energias. “Sempre que voltamos a encontrar-nos com a família, sobretudo no Natal, traz-nos o conforto familiar e sentimento de casa que nos vais faltando ao longo do semestre, é revitalizante”, descreve Mariana Vasconcelos.

Para além do contacto familiar, hábitos como preparar comidas típicas da ilha ou trazer consigo lembranças da terra natal, como bolos de mel e broas, ajudam a amenizar a saudade e a trazer um pouco do conforto da ilha para o continente. “Além de falar com os meus amigos e familiares da Madeira recorrentemente, gosto de fazer algumas comidas que me lembram de casa, e, na mala preparada para a Covilhã, nunca faltam bolos de mel e broas da minha avó”, partilha Maria Neto, descrevendo alguns dos seus métodos para ir controlando esta saudade.

 

A importância da Comunidade: Família Longe de Casa

Criar laços de amizade e encontrar uma rede de apoio no continente é uma muleta importante na gestão da saudade e da saúde mental destes jovens deslocados. “Muitos dos meus amigos também são de longe e, tal como eu, não têm a possibilidade de ir a casa com frequência. Esta partilha de experiências e apoio mútuo ajudaram imenso a lidar com a distância, principalmente no meu ano de caloiro” conta Daniel Câmara. “A praxe teve um papel muito importante neste processo pois ajudou-me imenso a integrar e a criar amizades que se tornaram fundamentais para me sentir acolhido e menos sozinho”, partilha ainda o estudante.

É a pensar na integração que nasceu o NERAUBI, o Núcleo de Estudantes da Regiões Autónomas da Universidade da Beira Interior, e que hoje é um importante ponto de encontro e apoio para estudantes açorianos e madeirenses. O projeto visa criar uma rede de conhecimento e suporte mútuo, proporcionando um espaço de acolhimento e partilha de experiências comuns. “O NERAUBI nasceu de um grupo de pessoas que acreditavam ser possível criar uma rede de apoio entre estudantes ilhéus na UBI, que compartilhavam a mesma situação, em que pudéssemos ajudar-nos uns aos outros a enfrentar os diferentes desafios que surgem da distância.”, explica a Presidente, Leonor Castro. “É, no fundo, um ponto de referência para sentirmos que não estamos sozinhos”, acrescenta Catarina Vieira. Através de atividades e projetos, como noites de jogos tradicionais de tabuleiro ou cartas, churrascos e momentos de convívio que o NERAUBI vai tentando promover a integração e o sentimento de comunidade, com o objetivo de aproximar os alunos deslocados e criar uma comunidade. Apesar de, por vezes, a adesão não ser a mais forte, contando por vezes com uma dúzia de participantes, a intenção e a luta por criar um ambiente mais recetivo aos alunos, continua ativa.

Para muitos estudantes, as amizades que constroem no continente tornam-se numa verdadeira “família longe de casa”. “Na Covilhã, tenho uma grande rede de suporte mútuo, com vários amigos que acabaram por se tornar uma espécie de ‘família’ longe de casa”, afirma Leonor. “Desde jantares mensais a encontros semanais ou cafés ocasionais, são essas as pessoas que colaboram na construção de um percurso tão bonito, com quem sei que posso contar sempre!”, conclui. “Realmente tornam o meu percurso académico mais proveitoso, suportável e inesquecível. Um agradecimento infinito por estas pessoas”, expressa Catarina, grata pela companhia dos seus amigos.

 

A Covilhã: Um Refúgio de Acolhimento

A Covilhã, cidade estudantil, acaba por ser uma casa longe de casa para estes estudantes ilhéus e outros tantos. A presença de outros estudantes que também estão longe de casa, incluindo estudantes internacionais, cria um ambiente de compreensão mútua e apoio, como conta Maria Neto; “nunca fico ‘sozinha’ na Covilhã, porque há sempre outras pessoas das ilhas, do Brasil ou até estudantes do continente que também não vão a casa todos os fins de semana”.

A cidade oferece oportunidades de convívio, lazer e cultura, contribuindo para uma experiência universitária mais completa e enriquecedora. “Mantenho a minha vida cheia de atividades e ocupações que me trazem felicidade e realização pessoal, isto distancia-me da dependência emocional e infelicidade que pode acarretar estar longe dos meus”, partilha Catarina, sobre como se mantém ocupada e feliz na Covilhã.

É no Interior do país que centenas de estudantes provenientes das Regiões Autónomas decidem ingressar no Ensino Superior. Com uma oferta habitacional mais “atrativa” do que nas grandes cidades, as dificuldades são múltiplas, mas, entre todos os testemunhos recolhidos no decorrer desta reportagem, nenhum teria a capacidade de “trocar a Covilhã por nada”, pois “foi a melhor decisão”.

 

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