Começou a contar histórias informalmente no ano de 1992, para as crianças do Centro Educativo da Bela Vista, ao serviço do Instituto Chapitô, “sem pensar que isto poderia vir a ser uma profissão”.
Iniciou a formação como ator e estava a perspetivar “uma vida dentro do teatro performativo”. No princípio desta carreira, encontrava-se “dividido entre várias áreas”, quando lhe apareceu a oportunidade de contar histórias. Então aí “tudo batia certo”, pois “também tinha algum interesse pelas áreas da educação” e “de repente estava a ter uma dimensão performativa ao contar histórias” para um público com o qual “tinha de estabelecer uma relação pedagógica”.
Levou cerca de dois anos “a experimentar”, entre 1992 e 1995. O momento-chave em que decidiu “colocar todas as fichas nesta atividade” foi em 1995, quando foi convidado para contar histórias no “Maraton de los Cuetos”, o “encontro mais importante de contadores de histórias”, na cidade de Guadalajara, em Espanha. Neste encontro, “compreendi que existem pessoas a fazer carreira nesta área” e que esta “tinha um futuro”.
Quando regressou a Portugal, “estava determinado a focar-me nesta atividade”. Embora na altura já ganhasse dinheiro com a prática da narração, “ainda fazia trabalhos de teatro” e “estive ligado a alguns grupos até 1995”. No ano seguinte, “já estava praticamente a trabalhar só com narração”.
Como se definiria como contador de histórias profissional?
O mais longe que vou é isso, um “contador de histórias profissional”, o que já é suficientemente estranho. Aos poucos e poucos, fui fazendo descobertas desde 1992 até hoje. Sei que é uma ocupação com alguns anos noutros países, algo de que me apercebi depois de conviver com algumas pessoas que já tinham carreiras nesta área há mais tempo do que eu. De qualquer forma, é uma profissão moderna do final do século passado, que é quando começaram a surgir contadores de histórias profissionais. Portanto, é um ofício do qual eu ainda não sei muito bem qual será o seu futuro.
Do que se trata o movimento de narração oral em Portugal?
Não é um movimento formal. No fundo, sou o polarizador que começou com a atividade. Ou seja, eu comecei a contar histórias em 1992, depois conheci outras pessoas que acharam uma prática interessante e começaram a juntar-se a mim. A primeira pessoa que me acompanhou foi um ator chamado Ângelo Torres; outro camarada de primeira hora foi Horácio Santos, que já faleceu; depois juntou-se ao grupo a Cristina Taquelim e o Jorge Serafim. Diria que somos os cinco pioneiros da narração oral em Portugal. A partir de 1995, começa a haver alguma consciência da prática da narração oral, e nas conversas informais que íamos tendo, dizíamos que tinha nascido o “movimento de narração oral em Portugal”, que não tem estatutos nem normas, mas é simplesmente um conjunto de pessoas que leva esta prática a sério.
Qual é o estado deste movimento na atualidade?
Digamos que ele se vai consolidando e criando consciência. Os narradores são mais maduros do que eram há dez anos atrás, e têm mais compreensão do que é essencial na prática da narração oral. Não sei como funcionam as gerações de contadores de histórias, sei que há narradores que têm 20 anos e são belíssimos no que fazem, e outros com dez anos de atividade que estão a traçar bons caminhos. Naturalmente, têm uma carreira um bocado diferente, mas possuem uma seriedade e um olhar que vai dar frutos. Partilhamos pontos de vista, mas cada um tem o seu caminho e não sabemos muito bem para onde vamos.
Há uns anos, quando me cruzei com o movimento francês, tinha dez anos de carreira e havia narradores franceses com 40 anos de prática. E eu, na arrogância, disse e continuo a dizer que, no final de contas, éramos todos a primeira geração que no Ocidente recebeu atenção. Somos todos o princípio de alguma coisa que não sabemos o que quer dizer. No trabalho de recolha, encontrei narradores magníficos, mas dentro do registo tradicional, de contar em casa. Uma das narradoras mais fantásticas que conheci, Teresa de Jesus, tinha 90 anos quando a entrevistei. O filho dela, de 60 anos, muito surpreendido, disse-me: “Há mais de 50 anos que não ouvia a minha mãe contar histórias”. Ou seja, era uma magnífica narradora, mas permaneceu em silêncio. Só voltou a abrir a boca quando lhe bati à porta. Essas pessoas nunca foram reconhecidas nem valorizadas.
Como caracterizaria um conto tradicional?
Um conto é uma narrativa muito antiga, que não tem autor e é contada de muitas formas em diversas culturas. O que quer dizer que eu posso reutilizá-lo como eu acho e adaptá-lo à minha maneira de narrar, não pervertendo a estrutura narrativa que faz dele um conto. Sei que os contadores de histórias acham graça a estas narrativas, exatamente porque se podem apropriar delas e aferi-las ao dia-a-dia. Os contos têm alguns ingredientes que facilitam a oralização e reutilização, em termos da relação com a comunidade. A tradição oral está em constante transformação, é uma cultura “viva” que faz parte do Património Imaterial.
Como procedeu à recolha destas histórias?
Inicialmente tinha algumas que ouvi da minha mãe e avó. Quando comecei a ter de as contar a grupos, o meu reportório esgotou-se rapidamente. Então, fui à procura deste tipo de histórias em coletâneas escritas desde 1879, quando se deu a primeira recolha de contos tradicionais portugueses. No entanto, comecei a pensar: “mas será que ainda existe alguém a contar isto?”, e é quando eu começo a fazer a recolha de contos. Com um gravador, fui à procura de gente antiga que os tivesse ouvido, e foi uma grande surpresa, porque ainda havia muitas pessoas que se lembravam e contavam estes contos conforme os tinham ouvido. Para mim foi interessante confrontar a escuta presencial destas histórias, que tem outra eficácia, com as versões filtradas que li nos livros.
Como se prepara para os espetáculos?
Pensando. Que público vou ter e como posso ir ao seu encontro. Às vezes conheço o público e, à partida, sei o que fazer. Outras vezes, como esta noite, não o conhecia.
E de que forma cativa os públicos?
Procuro ir ao encontro das pessoas. Dialogar com elas, escutar e ajustar aquilo que eu posso partilhar ao “sabor da noite”. Hoje, ao começar o espetáculo, tinha projetado três caminhos possíveis: uma história brejeira, uma séria e uma mais leve. O público escolheu uma, neste caso foi a primeira que teve mais votos. Foram soberanos, e eu segui esse caminho. O que foi ótimo, pois era a primeira história que eu tinha projetado escolherem. Agrada-me a informalidade da narração oral, há uma tentativa de que as noites sejam únicas. Era o público que estava, e foi a forma de como eu me relacionei com aquele grupo. Amanhã, se viesse cá, com certeza estaria outro público e eventualmente votariam mais noutro caminho.
Qual é a importância da narração oral na era das tecnologias digitais?
Qualquer sociedade tradicional tem contadores de histórias, e é um ato validado e valorizado nessas sociedades. A Ocidente, é surpreendente viver de contar histórias, e eu acho que isso, de alguma forma, está relacionado com o audiovisual. Quando comecei a contar histórias no Centro Educativo da Bela Vista, fiquei muito surpreendido porque as crianças eram capazes de deixar a televisão e irem para o meu lado ouvir-me. Isto numa altura onde não tinha os recursos narrativos que tenho hoje. Acho que os novos meios audiovisuais vieram intensificar a valorização do ato de contar histórias. Foi assim que eu me senti quando comecei, e hoje continuo a achar que as sociedades futuras, ao contrário do que muita gente possa pensar, vão recorrer mais à prática da narração. Neste momento sinto-me só um instrumento dessa importância.