Bicentenário de Camilo: “Escrever é sangrar com lucidez”

Na tarde de 5 de maio, o Anfiteatro 2.12 da UBI encheu-se de literatura, emoção e memória. Em plena comemoração dos 200 anos do nascimento de Camilo Castelo Branco, estudantes e docentes reuniram-se para homenagear um dos maiores vultos da literatura portuguesa.

O evento, idealizado por Inês Brandão e Beatriz Costa — alunas da licenciatura em Estudos Portugueses e Espanhóis — nasceu de uma conversa no seio do Núcleo de Estudos Portugueses e Espanhóis (NEPEUBI). A partir daí, a vontade de “tirar do papel” a ideia de celebrar Camilo cresceu. “Eu e a Inês decidimos avançar com o projeto”, conta Beatriz. O desafio maior? “Preencher os dois painéis. Maio é um mês complicado, com avaliações e congressos. Foi difícil encontrar oradores disponíveis e alinhados com o tema”, explica. Ainda assim, o resultado foi uma tarde rica em reflexão. “Queríamos, sobretudo, fomentar o gosto pela literatura portuguesa. Muitas vezes, por ser arte, não é valorizada como devia. Este evento quis contrariar isso”, explicou Beatriz.

A sessão inaugural contou com o painel “Romantismo Camiliano – Maria! Não Me Mates, Que Sou Tua Mãe!”, onde os professores Carlos Nogueira e Gabriel Augusto Coelho Magalhães exploraram os contornos do romantismo nas obras camilianas. “Camilo foi um ultra-romântico: melancolia, rebeldia, idealismo e uma obsessão pela liberdade atravessam toda a sua escrita”, notou um dos oradores.

O painel “Romantismo Camiliano – Maria! Não Me Mates, Que Sou Tua Mãe!”

Seguiu-se o painel “Camilo Castelo Branco: o anti-herói romântico?”, com intervenções dos professores João Paulo Braga e Maria de Nazaré Valente de Sousa. Aqui, o debate centrou-se na ambiguidade da figura camiliana — entre o génio e o desajustado. Maria de Nazaré alertou para os perigos da simplificação: “Colocar rótulos aos autores incomoda, porque nem sempre fazem justiça à sua complexidade”.

O painel “Camilo Castelo Branco: o anti-herói romântico?”

 

Um dos momentos mais marcantes da tarde foi a exibição de vários folhetos e edições raras, trazidas pelo professor Carlos Nogueira, entre elas Maria! Não me mates, que sou tua mãe! — uma obra intensa, que retrata o drama de uma filha que mata a própria mãe, mergulhando o

leitor no desespero e na dor de uma realidade familiar extrema. O professor explicou ainda a importância da literatura de cordel, muitas vezes injustamente desvalorizada.

 

“A literatura de cordel começou com a invenção da imprensa e teve um papel fundamental na cultura popular. Era acessível, direta, e refletia a sociedade deforma crua e honesta. Apesar de ser associada a classes analfabetas, era lida por muitos e guarda um valor histórico e literário inestimável”, defendeu.

 

Entre o público, Inês Sánchez da Silva, aluna em Erasmus na UBI, revelava o seu entusiasmo. “Extraordinário”, foi a palavra que escolheu para descrever a palestra. “Falou-se de tudo um pouco, com informação geral e específica. Em Espanha, não se fazem iniciativas assim — e ver os próprios alunos a organizarem tudo foi, para mim, extraordinário”, partilhou.

Entre as leituras académicas e os testemunhos apaixonados, emergiu um Camilo multifacetado: cronista musical, dramaturgo, romancista compulsivo, mártir do amor. Filho bastardo, órfão desde cedo, viveu intensamente e “escreveu como quem sangra”. Um dos momentos mais simbólicos do evento foi a apresentação da reedição da obra No Bom Jesus do Monte, um texto confessional e melancólico, centrado num dos espaços que marcaram a vida do autor.

Camilo continua a fascinar leitores, investigadores e apaixonados pela escrita. “Escreveu com nervo, com sofrimento e com intensidade”, disse Inês Brandão. Já o professor Carlos Nogueira, orador convidado, lembrou que Camilo “continua a seduzir-nos”, sendo um autor que representa com profundidade a sociedade portuguesa, numa escrita marcada pela ironia, religiosidade, violência e paixão.

“Camilo é intemporal porque continua a tocar-nos”, concluiu Inês Brandão. E talvez seja isso que justifica a pertinência de uma homenagem como esta. Mais do que recordar o passado, trata-se de afirmar, com convicção, que a literatura — quando é verdadeira — não morre: transforma-se, renasce, e segue viagem nas mãos dos leitores.

Pode ler também