Cereja do Fundão: a alma de uma região

Um fruto pequeno, mas com um sabor que transcende a sua dimensão. Falamos da Cereja do Fundão. Uma cereja criada nas encostas da Serra da Gardunha que é muito mais que um simples produto: é a identidade de uma região e traz consigo muitas histórias para contar.

O seu rumo começou a ser traçado ainda antes dos anos 50 do século passado. Sem expressão no mercado, a fruta, na época plantada somente nos quintais, era vista numa ótica de subsistência, servindo na sua maioria para consumo familiar ou venda em feiras, mas muito raramente.

A partir de 1950, vários fatores contribuíram para o crescimento da produção, como as maiores acessibilidades, com a melhoria das vias rodoviárias, levando pequenas quantidades do produto para os mercados da grande Lisboa. A ampliação dos pomares e do seu número, onde, apesar do tamanho ainda reduzido, começavam a apontar para uma lógica mais comercial.

Até que, em 1980, se deu o “boom” na produção da cereja. Com um aumento significativo dos pomares, a cereja do Fundão começou a ganhar reconhecimento como produto-chave da região, fazendo assim as suas primeiras exportações, ainda que em quantidades reduzidas. Aqui, começou-se a falar de uma identificação não oficial da cereja como uma marca regional. A coordenação e profissionalização da produção de cereja começou a ser consolidada nos anos 90, onde o momento mais crucial foi a fundação da Cerfundão, em 1999, permitindo uma centralização da compra, armazenando, embalando e exportando a cereja em grandes quantidades

A consolidação e expressividade da fruta na região fizeram com que se começasse a olhar para ela como uma marca própria, começando-se a pensar no marketing territorial agrícola. Após ser alvo de muito debate, foi no início do ano de 2004 que surgiu a marca Cereja do Fundão, uma das prioridades do primeiro mandato do presidente da Câmara do Fundão, Manuel Freches.

A campanha realizada no âmbito do Euro 2004 foi uma das estratégias que deu impulso à marca desde início, com o slogan: “Cereja do Fundão, fruto da nossa Seleção”. A campanha consistiu na distribuição de cerca de 20 toneladas de cereja à porta dos estádios onde jogariam as seleções nacionais de Portugal, Espanha e Inglaterra, e teve um custo de aproximadamente 150 mil euros, abarcando ainda os eventos do Imago 2004 (Festival de Vídeo Jovem) e do Rock In Rio Lisboa. A divulgação foi ainda mais difundida com a colocação da informação em outdoors espalhados nas proximidades das autoestradas do país e junto às zonas fronteiriças.

Em 2025, a Câmara Municipal do Fundão continua a desenvolver atividades, eventos e parcerias em prol do crescimento da marca. É no seu escritório que Cláudia Saraiva, diretora do departamento de Comunicação e Marketing, procura novas formas de dar continuidade ao legado que a marca Cereja do Fundão tem deixado na região.

Os primeiros passos para tornar a cereja numa marca territorial foram a realização de campanhas no início para promover o fruto e eventos, sendo a mais forte, no ano de arranque da marca, aquela realizada durante o Euro 2004. A nível de obstáculos para a afirmação da marca, Cláudia afirma que é um caminho que se vai construindo:

Agora o objetivo é o mesmo, continuar a procurar novas parcerias para não apagar a marca do mapa: “Nós não temos propriamente uma campanha, é um conjunto de ações todos os anos que fazem a campanha Cereja do Fundão”.

Após serem estabelecidas parcerias com marcas como a Compal (Compal de Cereja do Fundão), Santini (gelado de Cereja do Fundão), TAP e Comboios de Portugal, Cláudia já fala do novo produto feito com a fruta da Serra da Gardunha, a kombucha de cereja do Fundão, e o modo como os contactos são feitos entre marcas:

Sobre os eventos, destaca o leilão das primeiras cerejas, realizado no passado dia 19 de maio, que revertem sempre para uma causa solidária, sendo este ano entregue um valor de aproximadamente 600 euros à Liga Portuguesa Contra o Cancro. Para além do leilão, têm a Festa da Cereja, que vai ser realizada nos dias 6, 7 e 8 de junho em Alcongosta; o Festival Gastronómico Sabores da Cereja, que se realiza durante o mês inteiro de junho em conjunto com 12 restaurantes, cinco pastelarias e três bares do concelho; e a Rota das Cerejas do Fundão, que consiste em visitas feitas em parceria com a Comboios de Portugal à zona do Fundão e da Serra da Gardunha, partindo das estações do Porto (São Bento) e de Lisboa (Santa Apolónia), realizando-se depois excursões já na cidade do Fundão.

Sobre aquilo que a Cereja do Fundão representa para si, não só enquanto produto, mas também enquanto marca, Cláudia responde: “É a marca que colocou o Fundão no mapa. Assim como de Portugal se fala do Cristiano Ronaldo, do Fundão fala-se da cereja”.

A marca não é nada sem  produto e produtor. A maior zona de concentração é nas imediações da Serra da Gardunha, mais precisamente na aldeia de Alcongosta. Ao portão da Quinta da Serrana, Madalena Rolão fala sobre a vida na sua área de pomar e a história que advém do mesmo, enquanto se procura abrigo em baixo da sua maior cerejeira.

Madalena produz cereja há cerca de 40 anos, tendo aumentado o número de variedades que produz até chegar às atuais 12. Antigamente, não se dava para viver da produção, e o pouco que ganhava foi quando começou a escoar o seu produto para os mercados em Lisboa.

Atualmente, trabalha com um grupo entre oito a 12 pessoas que já a ajudam há vários anos, e descreve  um dia de apanha normal na sua quinta: “Aqui passas um dia normal. Cantas, contas anedotas, trabalhas…é um dia impecável”. Com o calor que se faz sentir, a apanha começa pelas 5h da manhã e às 10h fazem uma pausa para um lanche, e com a continuidade do calor pela tarde, a apanha termina por volta das 13h.

A nível de tratamento, Madalena tem muito cuidado, e trata as suas árvores com um carinho especial:

Para facilitar a apanha, uma das estratégias e técnicas mais utilizadas pela produtora é a poda das árvores, de modo a que não fiquem muito altas, facilitando a apanha da fruta: “Antigamente não se podava, a árvore crescia livremente e a altura que tinha. Hoje em dia, nós podamos porque se elas forem podadas são baixas e toda a gente trabalha.”. “Antigamente toda a gente subia a uma árvore grande, hoje não. O podar é manter a árvore mais acessível.” conclui Madalena. Sobre o que diferencia a cereja do Fundão das outras, a produtora fala que o clima é o fator principal, sendo que os invernos são frios, sendo algo que a cerejeira necessita por essa altura, porque sem o frio rigoroso da região, não há produção. “E a nossa cereja, é mais rija, uma polpa mais consistente e por vezes mais doces” acrescenta.

Para os produtores, a falta de calor e o facto de ele chegar mais tarde este ano, está a adiar a apanha. As primeiras cerejas costumam aparecer nos inícios de maio, mas este ano estão a surgir em meados do mês. “Se tivermos uma floração que tenha chuva, que foi o caso deste ano, já não há abelhas, não há polinização. Logo, a produção não é tão boa.”, lamenta a produtora.

A proprietária revela que a criação da marca da Cereja do Fundão fez com que a produção regional de cereja fosse mais valorizada, e que a valorização dos produtores por parte da Câmara Municipal não só incentiva a maior e melhor produção, como a contribuição para o crescimento e afirmação da marca característica do município. Mas, não é só isto que motiva Madalena a continuar nesta área. A cereja na sua vida representa muito mais que trabalho, representa algo mais profundo, sendo uma paixão que está agregada a si desde infância:

Madalena não deixou os repórteres seguir caminho sem antes provarem a cereja produzida na sua quinta e um dos produtos que ela transforma na sua adega: o licor de cereja. Um local muito acolhedor, com decorações predominantemente feitas de madeira, desde as prateleiras do licor, às cubas, à mesa e às cadeiras onde nos sentámos. A frescura da sua adega contrasta com o calor abrasador que se sentia na rua, sendo o espaço ideal para provar cerejas com uma doçura viciante e o licor.

Para além de licores, a cereja quando transformada apresenta-se em diversos formatos, como chás e infusões, pastéis, compotas, licores, biscoitos, queijadas, bolos e tartes, gelados, chocolates, entre outros produtos.

A cereja, para além de se criar como identidade de uma região, também impactou a economia local. Segundo as declarações prestadas por Paulo Fernandes ao Jornal Económico, os quase 2500 hectares de pomares de cerejeira rendem, em média, 20 milhões de euros todos os anos, e representam mais de metade da produção nacional total de cereja. Desde há uns anos para cá, as exportações têm sido frequentemente realizadas para os mesmos países, nomeadamente França, Alemanha, Suíça, Luxemburgo, Países Baixos e Reino Unido.

Para além do nível económico, a Câmara Municipal do Fundão aproveita o contexto de crescimento da marca Cereja do Fundão para ajudar a integração de migrantes. De acordo com o Plano Municipal Para a Integração de Migrantes, a Câmara pretende aumentar a taxa de empregabilidade de migrantes, promovendo a relação entre empregadores e migrantes, divulgando material informativo e apostando na criação do próprio negócio. Sem os migrantes, na sua maioria de origem búlgara, romena e nepalesa, a maioria dos produtores não teria ninguém para apanhar a fruta.

Para os mais curiosos, há um sítio onde se pode aprender tudo sobre a cereja, desde a sua composição e variedades a algumas curiosidades sobre a sua produção, falando deste modo da Casa da Cereja, situada em Alcongosta.

David Proença, um dos responsáveis do museu, afirma que por norma as visitas começam a surgir em maior abundância em abril, porque os turistas pretendem ver as cerejeiras em flor, envolvendo a Serra da Gardunha num manto branco, muito semelhante a neve. “Agora no fim de maio começa a haver um pico ascendente novamente porque começa a aproximar-se a cereja.” acrescenta. Relativamente às visitas, conta que a maioria que tem a Casa da Cereja nas suas rotas turísticas são as pessoas que vêm de fora do Fundão, ou que acabam por coincidentemente visitar o mesmo. Acrescenta também, um facto engraçado, de que a maioria dos fundanenses quando entram no museu pensam que é uma casa onde se vendem cerejas.

Para o Fundão, a cereja é mais que uma cereja: é algo que os põe no mapa, que os destaca, e que os próprios fazem para se destacar. Apesar das adversidades e desafios que se colocam à produção, a Câmara Municipal e os produtores não dão o braço a torcer, querendo dar continuidade àquilo que para além de uma marca, é o investimento de uma vida, uma história e, sobretudo, uma paixão.

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