Quem faz a viagem até Monsanto começa a vê-la erguer-se da terra em grandes blocos de granito que rasgam o céu, lá ao longe. Tem uma vista feita para reis que queiram observar tudo o que é seu, e casas que parecem feitas de sonhos de crianças, com grandes pedras redondas que entram casa adentro como se de um móvel se tratasse.
Hoje é calma e pacata a vila de Monsanto. Caminha-se pelas ruas empedradas sempre a ouvir os próprios passos, acompanhados do chilrear dos pássaros e do bater do sino. Já teve o seu tempo de guerras e cercos, que deixaram as suas marcas na cultura e identidade da terra, mas agora entrega-se à paz.
Chegaram a ser quase 4000, mas hoje a população já nem chega aos 1000. Foi descendo colina abaixo o centro desta vila, onde o tempo foi passando. Começou lá em cima bem junto às ruínas do castelo, a antiga freguesia de São Miguel.
Ainda em 1758 viviam os monsantinos lá em cima. Hoje é difícil imaginar a zona repleta de casas, mas em tempos foi assim. Não fosse por uma faísca perdida na noite de Natal e um paiol de pólvora, talvez ainda existissem.
Descendo e descendo a escarpa lá foram os de Monsanto que viviam do que a terra tinha para oferecer. Do topo vistoso não era fácil o caminho até às hortas que se encontravam nas populações à volta, como o Carroqueiro. Há quem, por aqui, ainda se recorde de ver a mãe “abalar” de manhã e chegar à noite ou aos domingos ver este quadro pintado de janelas abertas por toda a vila que acordava no dia da missa, depois da semana passada junto à terra.
A Junta também desceu e agora encontra-se logo às portas Monsanto no Espaço Cidadão. Há dois anos decidiram mudar-se para facilitar o acesso a todos. A sede de Junta ainda se encontra lá ao cimo, nas ruas estreitas e inclinadas que dificultam a vida a quem vai a pé e a quem vai de carro.
Dentro do Espaço do Cidadão as duas secretárias são ocupadas por Helena Dionísio, tesoureira, e Isabel Caldeira, assistente técnica. Conhecem os cantos à casa, mesmo com as mudanças, e ouvem os que passam por aqui invejar a beleza de Monsanto. Mesmo assim, não deixa de haver o receio de que aconteça a esta sede de Junta, o mesmo que aconteceu, há muito tempo, a São Miguel.
As Adufeiras de Monsanto, também um marco da história desta vila e uma janela que nos mostra o passado das tradições monsantinas, vão terminar em junho deste ano com uma série de últimos espetáculos da peça “talvez… Monsanto” de Ricardo Pais, no Centro Cultural de Belém. A falta de gente leva a este fim, como conta Amélia Fonseca, fundadora do grupo. E o Rancho Folclórico de Monsanto também sente estes males. Costumavam ter uma dúzia de pares de dançarinos, hoje são 20 no total com as adufeiras que se juntam.
É o retrato de uma vila que parece ter parado no tempo. “A foto que está atrás de si é dessa data. O que é que há de diferente?”, pergunta Isabel apontando para uma foto que está em frente à secretária de Helena. A foto remonta aos tempos do concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal.
O galo de prata veio para Monsanto
Passa os seus dias na horta. Agora é altura da apanha da azeitona e anda atarefada, nem o frio a demove. Sozinha e com uma vista para Monsanto aqui vive, Maria da Luz. Todos se conhecem aqui, mas há um sorriso especial no rosto de cada um quando se fala de Maria. Dizem que é mesmo a luz de Monsanto.

Hoje tem 90 anos feitos, mas as memórias não lhe falham. Estão talhadas com definição na madeira lisa da lembrança. “Eu digo-lhe como foi, eu tinha quatro anos, mas lembro-me perfeitamente bem como se fosse hoje”.
É das primeiras memórias que tem, assistir a toda a festa que se recriou na vila com chegada do júri para avaliar se seria Monsanto a Aldeia mais Portuguesa. Ia ao colo do pai e com toda a “gente” da terra a ver. Arranjam-lhe até um vestidinho para levar. “Arranjaram-me um saiote cor de vinho com fitas verdes. E arranjaram-me um xaile verde com rama vermelha. Quando foram para o castelo houve um senhor que me tirou uma foto”.
A foto perdeu-se no tempo, e não chegou às mãos de Maria, mas o saiote ainda sobrevive. Está bem guardado, mas Maria descobre-o logo. Coloca-o à frente da cintura, ainda se consegue imaginar lá dentro. “Sempre fui pequenina”, diz entre risos. Hoje já não tem os lacinhos do dia em que correu Monsanto às costas do pai, mas guarda as memórias de uma menina pequena a ver a vila a encher-se.

“Eu lembro-me de os ver à porta da igreja. Veja lá, ainda hoje. Eu lembro-me de os ver à porta da igreja quando saíram lá de dentro e a dona Fernanda a pôr-lhe o cordão ao pescoço à noiva. E o batizado de um rapaz chamado Armando.” Maria está a falar do casamento e batizado reais que se realizaram quando os júris chegaram à vila. As memórias são soltas e voam pela memória de Maria da Luz como pássaros desordeiros, mas não deixam de ser à medida do que também o filme do concurso mostra.
Há uma simplicidade de quem viveu em miúda estes acontecimentos, mas também de quem nunca conheceu outra vida senão esta. Ri-se muito ainda a cantar a música que Monsanto fez depois da sua vitória no concurso:
“O galo de prata é lindo, tem o bico azul. O galo veio para Monsanto e as penas para o Paul”.
Uma picardia que resistiu ao tempo e ainda se entoa por aí, mas agora sem rivalidades.
Alegram-se-lhe os olhos quando se fala do rancho, há 70 anos que participa. Já viu muito mundo com as viagens do grupo, até a Jugoslávia. “Foi um festival internacional 70 países representados, mas Monsanto era o que levava mais palmas”, disse. A música faz parte de si, talvez tenha nascido esse bichinho de assistir aos ensaios para a apresentação ao júri. Afinal de contas, acompanhava a mãe.
“A minha irmã dançava e eu tocava o adufe, mas eu também sei dançar. Mas como eu sabia tocar o adufo, nem todas podem ir a dançar. E a gente, à boa dúzia, ia para o terreiro todos os domingos a dançar. E os rapazes vinham para cá.” À pergunta se encantava os rapazes ri-se e diz que sim. Aprendeu a tocar enquanto regava as couves na horta. Iam batendo no fundo do balde e assim surgia a música no campo.
Sentada no muro da casa, de frente para a laranjeira carregada, tira da algibeira o postal que todos receberam quando ganharam o galo de prata. A preto e branco parados no tempo, lá estão os rostos que não via faz muito tempo. Um deles é a mãe que olha de volta para si nesta foto. “Até já tirou o lenço. Já não estava vestida com o traje”.

Consegue dizer o nome de todos. “Esta aqui é a Maria da Luz. Esta é a Maria Rita. Esta é a Ti Vitória, esta mulher aqui. Esta era a filha do Sr. Barbosa…” Mas o que lhe ficou mesmo decorado na memória foi o que a mãe lhe trouxe da viagem a Lisboa. Umas “rosquinhas arredondas com um buraco no meio e açúcar por cima”. Foi a sua prendinha, algo que nunca tinha comido.
Irene Gregório também era pequenina. Tinha três anos quando o concurso passou pela vila. Relembra-se apenas do “alvoroço” que foi, das histórias que lhe contaram e das memórias das irmãs. As suas memórias “batem certo” com as de Maria. Duas pequenas guardiãs do que foi o dia do concurso. Há várias maneiras de contar esta história, como diz Irene. E esta é a dela.
“Para as pessoas irem ao ensaio, não havia relógio, já era noite e tocava o sino. Quando tocavam umas três ou quatro badaladas, estivessem a fazer o que estivessem a fazer. Todos os dias, iam aos ensaios, na vila.” Lembra-se deste chamamento, e das irmãs irem até ele para ensaiarem. Uma delas até foi escolhida para estar a fazer crochê no balcão de uma senhora na rua de Santo António.

Às memórias do casamento, Irene, acrescenta a lembrança de ver a cama da noiva. Fizeram-na à antiga para também António Ferro e a esposa Fernanda verem. Mas, para lá destas demonstrações das tradições lembra-se do caminho que percorreram os jurados enquanto subiam Monsanto e de tudo que foi “pintado” cuidadosamente, como se de um quadro se tratasse. “O rancho partiu do Chafariz Velho, até à Lajinha. Representaram a malha do milho, a descamisa, as fiadeiras a fiarem, senhoras a cantarem, outras senhoras a bordarem, outras a fazer crochê. Cada uma fazia a sua coisa, meninas novas ainda, e eram todas meninas bonitas”.

Também Irene é uma apaixonada pela música. Esteve no rancho e agora ainda consegue nomear todas as músicas que são as suas favoritas com um olhar saudoso. “Era muito cantadeira. A minha mãe às vezes dava-me já assim: “Ai filha, está calada, que já estou farta de ouvir”.
Aprendeu tal qual como Maria da Luz. “Para lá ia a regar as couves, para cá vinha a tocar o regador”. Sempre teve adufe, Irene e as 4 irmãs. O avô era pastor e quando matava uma ovelha tratavam da pele para os adufes. A avó, depois, vestia-os e o quarteto podia voltar.
Senhora do Almurtão antiga, recolha musical feita em Monsanto pelo etnomusicólogo Artur Santos em 1956. Foto: Artur Santos. Vídeo editado por Rui Pedro Mendonça Fonseca.
No coração de Monsanto está Amélia Fonseca. Quase se vê a Torre do Lucano, que o galo, guarda da sua casa. De porta aberta e de manta sobre as pernas, Amélia pega no seu “pequeno” grande arquivo.
Não era nascida em 38 quando cá passou o concurso, mas é monsantina de gema e parte da sua família participou. Nos anos 70 deixaram consigo este arquivo com a mensagem de que “sabiam que ficava em boas mãos”. Nestas cartolinas vivem os recortes colecionados da época, do concurso, da vila, das preparações. Hoje também ela é uma guardiã destas memórias emprestadas, para que não se esqueçam.

Amélia foi fazendo a sua pesquisa com desejo curioso de saber mais e mais. Hoje consegue recontar o dia em que júri chegou. “Logo quando chegou, pelas portas do Espírito santo, apareceu um coro de rapazes a entoar as janeiras cantadas a quatro voz. Monsanto todo ele era um cenário das vivências de então. Apareceram as crianças da escola ali, ao pé da misericórdia, nos jogos que se chamam as pulgas. Apareceram as mulheres às portas de casa a fiar e a fazer as meias e a cantar rimances tradicionais de Monsanto. Apareceu a senhora a embalar o menino”.
Enquanto o júri passava, Monsanto recriava tudo o que era seu de uma vez só. A mãe era uma das mulheres que tocava o adufe e Amélia recorda-se dela falar muito das janeiras a quatro vozes que receberam os júris. Os rapazes foram devidamente ensaiados pelo Sales Viana, que ajudou na organização do cortejo, mas essas vozes não eram daqui.
Há detalhes que o tempo lava das memórias. Também a aparição de um rancho de mulheres de Malpica do Tejo fazia uma aparição na Festa do Castelo, momento reconstituído para o cortejo. Mas, o porquê de elas aparecerem, com os seus cabelos entrançados delicadamente, hoje esbateu-se da história. O sino toca lá fora, os pássaros agitam-se e o álbum de memórias de Amélia ainda vai a meio.
Depois do concurso ganho era hora de ir levantar o prêmio, o cobiçado galo de prata. A mãe de Amélia foi uma das mulheres que seguiu viagem para Lisboa até ao Teatro Dona Maria para receber o prêmio. A memória que ficou foi a da reação de Portugal a ver estes vencedores passar de comboio. “Contava a minha mãe que vieram de comboio e onde quer que passasse o comboio estava gente à espera para ver passar, porque sabiam que elas vinham lá”. Teve um eco nacional esta vitória e permitiu também aos de Monsanto ver um mundo novo.
Uma das regalias do troféu materializou-se na ida de 200 crianças monsantinas até Lisboa. A irmã foi uma delas e, Amélia, tem os passos todos documentados, desde o que fizeram, a onde ficaram hospedados, do pequeno-almoço ao jantar. “Foram recebidos no Ministério da Educação pelo ministro e receberam um livro intitulado “Animais nossos amigos” do Afonso Lopes Vieira. Receberam ainda guloseimas, gomas e chocolates.”
Este episódio recorda-a também da pobreza que se passava na altura. Quando chegou o momento para ir a Lisboa a irmã não tinha roupa para a ocasião. Acabaram por ir vestidas com o uniforme da Mocidade Portuguesa. “Foi com a farda, não tinha sapatos, então levou os sapatos do meu primo Raúl”.
Nem todas as memórias relembram um passado marcado por dificuldades, também há espaço para risos. “Lembro-me da minha irmã contar que quando foram à Costa da Caparica regressaram de barco e houve um que deixou cair o sapato para o rio. Levava-o na mão e deixou-o cair.”
Eram outros tempos, tempos mais difíceis onde Monsanto estava isolado no seu canto do mundo. Longe de tudo e de todos, até as notícias da vitória tardariam a chegar, não fosse pelo único rádio no cimo de Monsanto. “Era o rádio do Dr. Castiço. Quando foi o apuramento e chegaram à conclusão de qual seria a aldeia que ganhava ele colocou a telefonia numa varanda. O largo estava cheio de gente a ouvir aquilo que se estava a passar. À medida que as aldeias iam sendo eliminadas, iam gritando: “Olha já foi aquela! E nós não!”
Havia um entusiasmo e um orgulho que ainda hoje é palpável quando se fala da em Monsanto do concurso. Amélia sente que havia para as pessoas da altura a noção de que era o momento para mostrar o melhor que tinham e que algo de bom chegaria.
Logra a “pureza e graça”
Corria o ano de 1938 quando começa a agitação do concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal em toda a nação. Foi organizado pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) que queria encontrar a aldeia que “maior resistência oferecia a decomposições e influências estranhas e (apresentasse) o mais elevado estado de conservação no mais elevado grau de pureza características”, segundo o próprio regulamento do concurso.
Numa altura em que fora de Portugal se viviam tempos complicados, com a Guerra Civil Espanhola e Hitler no poder, isso espoletou uma reorganização do território, mas também um interesse nas tradições do país. Este interesse era um que marcava os trabalhos do SPN que cria construir uma identidade nacional adaptada ao Estado Novo, como se pode ler no livro Vozes do Povo.
“O recurso estilístico do Estado Novo passou sempre por ilustrar o país com uma dimensão familiar, aldeã. O espaço rural era o espaço emocional-simbólico onde se buscava o sabor português, o sentimentalismo gentil, inocente, primitivo, puro, tradicional e verdadeiro, de que o camponês era o único portador.”
Pedro Félix, investigador do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança da Universidade Nova de Lisboa (FCSH) in. Vozes do Povo: A Folclorização em Portugal
Os jornais já anunciavam este evento antes do regulamento feito e esse, é um, que ainda levanta dúvidas ao dia de hoje. Os critérios de avaliação nunca ficaram especificados e eram abrangentes em caráter “maior resistência a decomposições e influências estranhas”. Sabia-se que os avaliados deviam ser aldeias e apresentar o que era tradicional da sua freguesia, desde a roupa, à música, à comida e aos jogos e quem seriam os júris.
As aldeias apresentaram-se à imagem do que lhes foi pedido. Enalteceu-se a inacessibilidade que lhes era comum, mostrou-se o trabalho que existia nestas províncias, as paisagens e os costumes.
Concorreram 22 aldeias de norte a sul do país, duas por cada província na esperança de conquistar o galo de prata e os benefícios que viriam sobre essa asa. A aldeia vencedora seria premiada também com algum melhoramento de utilidade pública. De 22 ficaram 12 na segunda fase e três na terceira – Bucos, Monsanto e Paul.
“Continua presente na memória porque o concurso não se voltou a efetuar, porque se voltasse, se calhar, não ganhava de novo. Trouxe muita gente a Monsanto e continua a trazer.” Amélia consegue reconhecer este papel do concurso na vida de Monsanto, mas olhando para esse da perspetiva de 2025 a verdade é que vê as situações com outra clareza. “Nós, as pessoas, nunca vimos isto nestes termos. Quando certos historiadores começaram a escrever sobre isto e a dizer que seria aquilo. A gente começou a interrogar-se. As pessoas mais velhas não conseguem chegar aí de maneira nenhuma.”
Amélia consegue perceber a maneira como olharam para Monsanto ou como Monsanto foi escolhido. Como os “coitadinhos”. Confessa que até hoje não sabe o que queriam dizer com o título da aldeia mais portuguesa. Será que dentro dos parâmetros definidos não estavam outras ideias escondidas? “A mais pobre? A mais ignorante? Claro, não podia estar ali, preto no branco”.
Os monsantinos fizeram o melhor que conseguiam para mostrar e ganhar o prêmio porque, como explica Amélia, lá no fundo persentiam que seria algo bom, embora não soubessem o que poderia ser. Mesmo assim, depois do galo pouco se fez. A proposta de construção de uma pousada não aconteceu. A construção da estrada foi já feita quando Amélia era miúda, nada tinha que ver com o concurso. “Eu nem sei se as pessoas na altura estavam à espera de melhorias”.
Podiam não saber o que lhes esperava, mas nem tudo foram amarguras. Do concurso nasceu o rancho, em Monsanto e no resto de Portugal, nos anos 40 houve uma explosão de ranchos folclóricos.
Amélia não sabe porque se começaram a organizar, mas acredita que tenha sido pela boa causa de assegurar o que havia na terra e se estava a valorizar. “O rancho de antigamente não tem nada a ver com o de agora, mas é melhor isto do que nada”. Como diz, as coisas as coisas continuam a avançar e é tudo importante na vida está certa de que as pessoas vão largando as raízes e juntam-se as coisas novas, mas que há sempre outras que voltam a pegar.
Hoje é o rancho que carrega o verdadeiro galo de prata, mas apenas em situações especiais. Tentam levar em cada atuação um bocadinho de Monsanto a Portugal. O presidente do rancho explica que está entregue a quem representa o povo. Está entregue à Junta de Freguesia.
E as penas para o Paul
A animosidade entre Monsanto e Paul começou aqui, com a Aldeia mais Portuguesa de Portugal. Chegados ambos à última fase, o Paul, não aceitou a derrota. “Foi pólvora que meteram aqui”, comenta, ainda baixinho, Maria do Céu. Mesmo com a confusão do Café Central, o mais antigo da aldeia, conta-se como um segredo esta rivalidade como para que não acordar o dragão.
“Cada vez que se falava em Monsanto, era assim, uma coisa terrível. Eles roubaram. E eles ficavam com o galo de prata, que pertencia ao Paul, e eles não o podiam ter levado. Foi tudo uma tramoia”, explica entre risos Leonor Narcisso. Mesmo assim, admite que ainda hoje restam dúvidas de como era a regulamentação do concurso. E se na altura o Paul mandou impugnar a vitória de Monsanto, por ser vila e não aldeia, a população continua a concordar até hoje.

“Eles estavam mesmo a pensar em ganhar pela quantidade de apresentações que fizeram” explica Maria do Céu. Era bebé quando os júris chegaram ao Paul, mas a casa do seu padrinho funcionava como um “quartel-general” das operações para o grande dia. Esteve até albergado nessa casa Sales Viana, que estava no júri provincial da Beira Baixa. “É um bocadito manga de capotes. Estava virado para eles”. Com alguma indignação na voz continua a “teoria da conspiração” do Paul, enquanto relembra que este sujeito esteve a comer e dormir da sua casa. Talvez, não seja uma teoria da conspiração, assim tão oculta, porque há a lembrança em Monsanto de Sales Viana auxiliar e coreografar o cortejo.
No entanto, era o senhor Rocha que estava por de trás da candidatura do Paul e era o gerador para esta vontade de ganhar. Assim, foi a sua desilusão que até hoje resta um poema sobre a mesma. E quem o conhecia sabe que esteve até aos seus últimos dias com essa “encravada”.
Representaram os vários trabalhos ligados à terra, como a colheita do milho e a vindima. Dos vários lados da cidade apareciam os homens com as escadas para a azeitona e as mulheres a cavar, enquanto entoavam diferentes músicas. “O Paul sempre foi uma aldeia de cantores”. Não sabem de onde surgiram muitas das músicas, mas sabem que são antigas. Algumas do tempo da avó de Leonor que tem na memória as palavras dela: “São como as cerejas, levam e trazem”. Havia este ritual de se cantar no campo e aqui as pessoas viviam da terra. Enquanto trabalhavam do nascer ao por do sol a música preenchia o tempo.
“Foram tudo umas marionetas nas mãos deles”. Leonor pergunta-se quem vai malhar o milho de saia rodada? Ou apanhar a azeitona de blusa branca? Reconhece, tal como Amélia e com vários anos voltados, de que houve elementos folclóricos desenhados e inventados à medida. “O povo, era uma blusinha que tinham e que tinham de lavar, muitas vezes, ao sábado para vestir ao domingo.”

As duas mulheres recordam o tempo em que muitos andavam descalços pelas ruas feitas de gogos do rio ou terra batida. Quando não havia grupos formados, quando era só trabalho e mais nada. Quando o domingo era reservado para alguma diversão e o que havia era tudo espontâneo.
Hoje a rivalidade já está dissipada, quase. Há um certo gosto amargo de quando se fala em Monsanto no Paul, mas não tanto como no passado, porque o tempo já lá vai e agora a vida é outra.
O galo que não canta
Monsanto e Paul não são tão distintos assim. Uma na encosta da Serra da Estrela, outra no alto do monte, mas ambas com pessoas trabalhadoras que procuravam ver reconhecidas a sua cultura longe dos grandes centros.
Depois de anos voltados e do concurso se tornar águas passadas, continuava a haver uma pobreza extrema. Ao Paul a eletricidade chegou nos anos 50. “Chegou acho que tinha 18 anos. Ainda nem namorava” ri-se Maria do Céu a recordar esses anos, mas Leonor comenta que, de facto, não o concurso não veio a melhorar nada. “Viam-nos como pobretes, mas alegretes”.
A traça da aldeia perdeu-se completamente. As casas que se podem ver no filme do concurso parecem de um cenário distante ao de agora. Onde antes existiam casas feitas dos grandes gogos da ribeira, imponentes e escuras, erguendo-se do chão como uma continuação do rio, há agora casas caiadas sem nada que nos relembre do passado. Leonor coloca a questão: “Será que se tivéssemos ganho teríamos conseguido parar estas alterações?”

Em Monsanto, Amélia não consegue especificar quando é que a luz chegou. Sabe que em 61 ainda não tinha vindo para Monsanto. Guardou essa data porque nela há a história de uma menina que andava no colégio e que no primeiro Festival da Eurovisão que conseguiu ver, foi a correr do colégio para casa e de Monsanto para Relva, à procura da única televisão que havia. De lanternas na mão subiram e desceram a escarpa até ao único sítio com luz e, assim, com televisão.
“Só muito mais tarde, acho que já era casada, é que o meu marido trouxe um eletricista da Guarda, e puseram eletricidade na casa da minha mãe”. Estudou à luz do candeeiro de petróleo como tantos outros, mas acredita que, mesmo assim, a mãe foi das primeiras pessoas a ter eletricidade em casa.
Tanto Monsanto, como o Paul viviam num isolamento escondido do resto de Portugal. Pintaram o quadro perfeito de um Portugal “puro” e “intocado” como desejava o SNP. Parece que foram apenas isso, pequenas pinceladas num grande quadro que fica por acabar.
Hoje o galo de cobre cumprimenta todos os que passam em Monsanto no topo da Torre do Lucano. Falso e adormecido, o verdadeiro aprisionado.
