Ingressar no ensino superior em plena crise econômica tem gerado problemas para os novos estudantes e exigido ainda mais da carteira dos que reiniciam outro ano letivo. Em uma época em que os esforços do Governo não têm sido suficientes para apoiar todos os estudantes, falta perceber o que tem não tem funciona e o que pode vir a ser feito.
A entrada na faculdade, para muitos estudantes deslocados, implica deixar a cidade natal para trás e partir em busca de uma nova casa. Na maioria das vezes, trata-se de um quarto pelo qual seja capaz de pagar. Atualmente, encontrar boas opções tem sido cada vez mais difícil, em diferentes lados do país. A Covilhã, uma cidade com tradição académica, não fica para trás em comparação às grandes cidades, como Lisboa, Porto e Coimbra. A situação da oferta habitacional na cidade preocupa, cada vez mais, os estudantes da Universidade da Beira Interior.
Ao conversar com estudantes de diversos contextos, sejam nas residências universitárias, residências privadas ou até mesmo quartos arrendados, foram descobertas histórias sobre os desafios de estudar cá. Além disso, alguns especialistas analisaram a situação do mercado imobiliário para os estudantes (mas não só) em Portugal e na Covilhã.
De Pernanbuco à Covilhã
Quando soube que foi aprovada para um intercâmbio na UBI, durante o doutoramento, no começo de 2024, a brasileira Danielly Bezerra logo começou a procurar alternativas de hospedagem durante seis meses. Entre as ofertas de Facebook e outras plataformas de divulgação, Danielly esteve à procura “durante alguns dias” por oportunidades com contrato, mas não encontrou muitas opções. A procura de alojamento foi um processo demorado, que acabou sendo bem-sucedido após à recomendação de uma amiga.
“Cheguei na Royal Prime através de uma indicação. Foi uma oportunidade de encontrar um lugar seguro, fixo e que realmente existisse, além de oferecer uma estrutura mínima para o processo de doutoramento. Antes disso, observei uma disparidade financeira olhando para uma realidade de conversão entre real e euro. Encontrei também alguma dificuldade em firmar contratos de menor tempo, entre três e seis meses.”.
Por outro lado, Danielly conta que a alternativa de uma residência privada, que custa 506€ mensais, só foi possível em função da bolsa de estudos de 1.300 euros, oferecida pelo Governo do Brasil.
“Sem a bolsa do Governo, estudar aqui seria impraticável. Mesmo na minha situação, vivendo em uma cidade do interior de Portugal, como a Covilhã, com custos mais baixos, esse apoio é fundamental para conseguir me manter aqui. Sem esse valor, não seria possível. Nem ter vindo para cá, nem estar morando na Royal Prime ou até mesmo viver em uma condição confortável”, declarou.
De acordo com Danielly Bezerra, as boas condições de moradia são fundamentais para um bom resultado intelectual no desenvolvimento do doutoramento. Contudo, nem todos os estudantes têm essa oportunidade.
“Com certeza, ter uma boa casa é fundamental para desenvolver um doutoramento. Precisamos administrar também os outros problemas. Quando a moradia se torna um problema, as coisas ficam ainda mais instáveis. Tenho colegas que vieram sem auxílio da CAPES, oficialmente conhecida como Programa de Doutorado-sanduíche no Exterior (PDSE). São realidades muito mais difíceis que a minha. As pessoas se mantêm com seus próprios meios, trazidos do Brasil. Ainda assim, encontram dificuldades de uma compensação por parte das universidades daqui e até mesmo de programas para receber esses estudantes estrangeiros, que tem realidade muito complicadas”.
Problemas dos deslocados
Já Tomás Quaresma deixou Portimão, no Algarve, para vir estudar na Covilhã há cinco anos. O algarvio não recebe qualquer bolsa durante os estudos e, desde então, tem um quarto privativo na residência V da UBI.
O valor de 113€ mensais aumentou cerca de 10% para o último ano letivo, segundo Tomás, mesmo que as condições não tenham melhorado muito. Ainda assim, o estudante de 23 anos acredita que algumas questões poderiam ser melhores.
“Pessoalmente sou uma pessoa bastante privada, por isso eu não gosto muito de partilhar o meu espaço com outros. Nesse aspecto, para mim seria melhor, ter uma cozinha só para mim, por exemplo, ou a casa de banho. Também a questão do barulho à noite, as pessoas no corredor, são questões que me fazem bastante confusão”, declarou.
Mesmo que pague um valor relativamente baixo e sinta-se conformado com a sua situação na residência da Universidade da Beira Interior, Tomás acredita que a habitação estudantil na cidade não é tão fácil quanto era.
“Sei que existem alguns problemas com habitação dos estudantes, mas não estou muito a par. (…) Diria que construir mais uma residência que seja acessível aos estudantes ajudaria. Eu moro em uma delas, é pequena, mas serve para o que é. Acredito que isso seja um problema da sociedade atualmente”, finalizou.
Por fim, João Cunha, de 17 anos, deixou Castelo Branco para estar em Ciências da Comunicação na Universidade da Beira Interior em setembro de 2024. Após algum tempo a tirar Gestão, João decidiu deixar o curso, no Polo IV, para estudar no Polo I da UBI.
Desde então, vive um estúdio, que escolheu ponderando pagar até 370€, próximo ao Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Com a mudança de curso, o estudante tem sofrido com a distância em relação ao campus do novo curso.
“Nesta altura do ano letivo, não tenho conseguido muitas ofertas mais próximas do polo principal da UBI. Estar aqui em cima e ter que pagar Uber em algumas situações, como quando perco um autocarro, afeta muito ao nível financeiro e até mesmo de tempo”, declarou.
Por isso, João Cunha deve ter um cenário diferente no começo de 2025. O estudante conta que acertou a saída com o atual senhorio para fevereiro, mesmo que o jovem de 17 anos ainda esteja à procura de uma nova casa.
“Pelo que tenho visto, o valor normal para viver em um T0 na Covilhã tem sido entre 300 e 370€. Claro que depois há sempre mais caros, mas o normal tem sido esse valor. Não tenho visto nada de muito desgastado. (…) Claro que também estou em busca de alternativas mais baratas, mas abaixo dos 300€, não se consegue encontrar mesmo nenhum T0. Acho que acima de 400€, para um estudante, é um valor muito elevado”, pontuou.
A realidade do mercado imobiliário em Portugal
Milay Correia, agente imobiliária da ERA na Covilhã há 15 anos, enxerga que o mercado na região tem um claro aumento de preço, mesmo que as vendas não tenham caído. Com isso, o público com menores possibilidades financeiras, como os jovens trabalhadores e estudantes, acabam sendo atingido.
“Trabalho cá desde 2009 e, à nível de faturação, nunca fechamos o ano em baixa. Estamos sempre a crescer. (…) Por outro lado, o mercado para os portugueses, ou seja, as pessoas que nasceram e cresceram cá, tem sido mais complicado. Os preços aumentaram. Não é todo casal jovem, de 20 a 30 anos, que pode pagar 10% do valor de uma casa de 180 ou 200 mil euros. Para essas pessoas, não está mais fácil. Nessas condições, temos recebido investimento de muitas pessoas de outras regiões, como Lisboa, Porto e Coimbra. 90% das pessoas que tem comprado casas de 400 mil, como a grande parte da nossa oferta, não é nascido cá”, declarou.
Considerando essa realidade, Sabrina Pilar, que trabalha no mercado imobiliário da Covilhã há dois anos e meio, observa que até mesmo a oferta de casas a menor preço na cidade tem diminuído.
“Mesmo para as pessoas que veem de fora, comprar uma casa na Covilhã tem sido muito mais difícil. Hoje temos uma oferta pequena e os preços aumentaram muito. Com isso, os arredores têm sido uma boa alternativa com melhores condições e, ao mesmo tempo, preços mais acessíveis”, declarou.
Ainda que a Covilhã seja uma cidade intimamente interligada ao funcionamento da UBI, Milay enxerga uma realidade preocupante em termos das ofertas com preços acessíveis para estudantes, em localizações mais próximas da Universidade da Beira Interior.
“Em 2009, uma T2 mobiliado e equipado, arrendava-se tranquilamente por 350€. Atualmente, encontram-se quartos quase com esse preço. Ou até mesmo um apartamento, mas muito afastado e com pouquíssimas condições, sem mesmo ser mobiliado. A cidade sempre foi estudantil. (…) Por isso, os arrendamentos mais acessíveis até existem, mas não estão na nossa bolha. Ofertas entre 400 e 450 euros estão no mercado, mas, muitas vezes, sem muito confronto. Normalmente, são aqueles apartamentos mais antigos, onde o frigorífico não funciona, a janela não abre, não tem aquecimento central. Assim, os estudantes acabam por se sujeitar à más condições ou até mesmo ficarem afastados da universidade”.
Em contrapartida, Miley ainda destaca que o Alojamento Local, em função do turismo proveniente da Serra da Estrela, é outro fenômeno que tem sido visto no mercado imobiliário da Covilhã e, consequentemente, limita a oferta para os estudantes da UBI.
“Algo que tem acontecimento muito é que os proprietários de apartamentos não querem mais estudantes. Isso porque, pela moradia que ele tem, conseguem receber um valor muito mais alto para um médico ou um advogado [em relação aos estudantes]. Além disso, os proprietários não sofrem com a troca dos estudantes, que saem de férias ou até mesmo tem vínculos mais curtos em função do seu curso na universidade”.
Por fim, a Covilhã também tem visto um grande investimento em alternativas de hospedagem. Em contrapartida, as opções em construção devem ser todos em alto padrão, o que torna as alternativas mais acessíveis mais escassas e, inclusive, acaba por inflacionar o mercado, segundo Milay.
“Nota-se que a região está muito em alta neste momento, por vários motivos. No Fundão, nunca houve tanta procura. Já acompanho o mercado há 15 anos e nunca teve tanta gente. Já na Covilhã, sempre tivemos procura. Agora, a cidade tem mostrado cada vez mais potencial e as pessoas de Portugal e até do mundo, querem vir para cá”, pontuou.
Sabrina complementa: “Os investimentos em residências privadas são em alto padrão, não tem sido para estudantes com menor capacidade econômica. Acho que essa realidade [de poucas ofertas acessíveis] não é do mercado imobiliário, que atende as necessidades que são postas hoje”.
Os motivos para crise na habitação em Portugal
Já Filipe Grilo, economista e um dos especialistas da evolução do mercado imobiliário em Portugal, acredita que o aumento dos valores das habitações começou em 2013 no país. Logo após a Troika, quando o mercado imobiliário português estava completamente em baixo, surgem alguns aspectos que foram fundamentais para a realidade deste setor do mercado atualmente.
“Na altura, para atrair algum dinheiro, o Governo fez um programa especial dos Vistos Gold. A ideia era que quem tivesse investido 500 mil euros em Portugal teria automaticamente acesso a um visto português. E o visto português tem uma vantagem: entrar automaticamente na União Europeia. Isto atraiu muito investimento por parte de estrangeiros com muito dinheiro, que pensaram investir 500 mil euros para comprar uma casa seria mais vantajoso do que em empresas. Portanto, o primeiro grande movimento da subida dos preços das casas foi este aumento da procura por parte dos investidores estrangeiros com o objetivo de obter o visto e, com isto, depois fazer negócios na União Europeia”, disse.
Segundo Grilo, a partir daí, esse fenômeno acabou por gerar uma grande inflação nos preços do mercado imobiliário em Portugal.
“Até àquela altura, a maior parte das casas em Portugal, no máximo, custavam entre 300 e 400 mil euros. O que não dava para validar o Visto Gold. Logo, os donos destas casas perceberam que teriam mais procura se vendessem por 500 mil, valor previsto pelo objetivo legal, tendo muito mais investidores interessados em comprar casas. Assim, estes preços das casas começam a subir a barreira dos 500 mil euros. Ora, isso é uma casa antigamente que estava… custava 300 mil, agora custa 500 mil. A casa dos 100 mil também começaram a subir. Não sobe na mesma proporção, mas acaba por subir”, afirmou.
Outro movimento que gerou a situação atual foi a queda das taxas de juros, promovidas pelo Banco Central Europeu, em seguida da Troika. “Entre 2014 e 2015, a inflação estava muito baixa. Inclusive, havia receio de deflação, que é uma taxa de juros onde os preços ficam negativos. Assim, o Banco Central Europeu decidiu baixar as taxas de juros para fomentar a economia e aumentar o consumo. E quando as taxas de juros baixam, os empréstimos à habitação ficam muito baratos. E, portanto, a maior parte das pessoas pensou ser um bom negócio fazer um empréstimo para comprar uma casa. Contudo, onde se pagava pouco juros, gerou um cenário de muitos problemas com as prestações. As taxas aumentaram e as pessoas já não conseguem mais pagar as prestações, o que levou também a motivar o crescimento da procura e as casas começaram a ficar cheias”, declarou.
Por fim, ainda segundo o economista, outro grande ponto que explica o cenário português é o turismo. “Também entre 2013 e 2014, a tendência do alojamento local em função do turismo se instaurou. Portanto, as plataformas, como o Airbnb, se popularizam e as pessoas começam a perceber que se tiverem uma casa, podem arrendar a preços muito mais altos porque os turistas vão estar dispostos a pagar. Este é o terceiro movimento de aumento da procura. Portanto, aumenta brutalmente a procura pelas casas para fins de turismo e, isto preencheu por completo as casas disponíveis no país. Com isso, as casas cheias significam que os preços de mercado continuam a subir. Fica muito mais difícil comprar a casa e, portanto, para eu pagar alguma casa, eu tenho de pagar por um preço superior. E é onde estamos neste momento”, finalizou.
Em relação às medidas que o governo português tem realizado para combater a crise habitação para os estudantes, Filipe Grilo aponta que as iniciativas têm sido residuais, considerando a situação. “O que o governo tem feito é, no limite, dar uma bolsa de apoio aos alunos que vêm de fora, mas também sabemos que é relativamente residual, tendo em conta o valor das rendas que se paga atualmente. Por isso, isso acaba por não ser suficiente. Logo, para um aluno de fora vir estudar, normalmente, tem de ter um apoio financeiro familiar ou trabalhar, se não a bolsa não lhe chega para fazer isso. Esse é o que nós temos atualmente”, afirma.
Os números na Covilhã atualmente
A Direção-Geral do Ensino Superior (DGES) recolhe alguns dos dados das ofertas de habitação para os estudantes em Portugal.
Assim, vale destacar o aumento que pode ser observado entre 2020 até o presente momento. Segundo a DGES, há cerca 101 quatros disponíveis na Covilhã. Já em termos de valores, a média é de 180€ (sem as despesas incluídas) e 216€ (com despesas incluídas).
Nos últimos quatro anos, os valores mínimos, médios e máximos também subiram na cidade da Beira Interior, conforme o gráfico abaixo. Por outro lado, a oferta de número de quartos para os estudantes diminuiu. Em dezembro de 2021, por exemplo, a Covilhã tinha 176 quartos, com uma queda de 42,6% em três anos.