Farmacêutico: A Diferença na Linha da Frente

Campanha de sensibilização e purificação da água na aldeia de Muchaneça, em Moçambique. Foto: João Roseiro
Portugal tem um historial reconhecido na resposta a catástrofes e a situações de emergência. E o farmacêutico é um profissional de saúde capaz de salvar vidas e melhorar a qualidade de vida e o bem-estar das populações afetadas nestes contextos. Paradoxalmente, nestes contextos, o seu reconhecimento ainda está muito aquém comparativamente a outros profissionais.

Atualmente o acesso a cuidados de saúde, nomeadamente medicamentos e outros produtos de saúde, é indispensável. Neste âmbito, o papel e conhecimento do farmacêutico tornam-se mais relevantes, tanto nas sociedades altamente medicalizadas dos países desenvolvidos, como nos países em desenvolvimento. Nas primeiras os medicamentos representam bens essenciais e a interrupção do seu fornecimento causa a deterioração da qualidade de vida das populações, enquanto que, nas segundas, o acesso ao medicamento pode salvar vidas, tendo em conta as necessidades complexas destes contextos.

O Tenente Coronel Paulo Cruz, farmacêutico com 22 anos de experiência em contexto humanitário, tendo já visitado 109 territórios em missão, vivenciou esta última realidade numa das suas missões em África, onde se deparou com o caso de uma “infeção generalizada que podia dar origem a uma amputação” porque apenas possuíam amoxicilina e a causa da infeção era resistente a este antibiótico. Paulo Cruz mobilizou todos os recursos disponíveis e conseguiu que fossem enviadas de avião, a partir de Portugal, 10 ampolas de cefalosporina de 2ª geração. “Assim, com 10 ampolas e um custo de 2€ conseguimos evitar uma amputação”, explica.

Embora a importância dos farmacêuticos permaneça constante nestes dois cenários, o nível de reconhecimento do seu papel varia muito. “Eu sinto que o farmacêutico é um profissional muito valorizado nos ambientes onde não há nada, muito mais valorizado do que no nosso dia-a-dia”, referiu ainda o Tenente Coronel.

Portugal sempre teve um papel ativo no contexto de ajuda humanitária. A Cruz Vermelha Portuguesa é das entidades com um historial mais antigo a operar no país nessa área. Criada em 1865, a Cruz Vermelha, por si só ou enquadrada no seu movimento internacional, tem prestado auxílio em cenários de conflito armado e de desastres ou catástrofes naturais, tanto em território nacional, como internacional.

Após a revolução de 25 de Abril de 1974, ocorreu um aumento acelerado do número de Organizações Não Governamentais (ONG) a operar em Portugal. Pela primeira vez, o desenvolvimento do trabalho humanitário ficou principalmente sob a alçada das ONG. Como no caso da AMI, fundada em 1984 e que já atuou em 82 países, tendo enviado centenas de voluntários e toneladas de ajuda entre medicamentos, equipamento médico, alimentos, roupas, viaturas, geradores e outros.

Os três ramos das Foças Armadas Portuguesas possuem também grande notoriedade em operações de paz no âmbito da ONU, NATO e outras organizações internacionais. A Marinha, Exército e Força Aérea Portuguesa iniciaram a sua participação nestas forças no início da década de 90, respondendo a uma grande diversidade de missões. Também a PSP e a GNR participam neste tipo de missões, tendo iniciado a sua intervenção em 1992 e em 1995, respetivamente.

O Tenente Coronel farmacêutico Paulo Cruz mencionou que “temos uma coisa muito boa, somos corajosos. Os portugueses são, por natureza, um povo corajoso e a coragem faz muita falta nestes sítios”.

 

Auxílio após ciclone Idai

Portugal contribuiu mais uma vez para a ajuda humanitária internacional em 2019 quando Moçambique foi atingido pelo ciclone tropical Idai. O ciclone atingiu a cidade da Beira, na província moçambicana de Sofala, no dia 14 de março, causando uma destruição maciça de infraestruturas e um corte completo de energia. O ciclone adentrou por Moçambique e alcançou os países vizinhos Zimbabwe e Malawi, afetando mais de 3 milhões de pessoas nestes três países do sul da África. Mais de mil pessoas morreram devido ao ciclone, muitas outras ficaram deslocadas e em busca de abrigo, alimentos, acesso à água potável e saneamento.

Neste desastre o Major João Roseiro, farmacêutico de formação, integrou a Força de Reação Imediata num contexto de busca e salvamento. E foi dos primeiros a chegar à cidade da Beira após ser atingida pelo ciclone Idai. Encontrou um cenário de grande destruição em que as principais redes rodoviárias estavam bloqueadas e as margens do rio Búzi completamente alagadas. Conseguiu chegar rapidamente através de botes, pequenas embarcações que a equipa levou, às zonas onde ainda ninguém tinha estado.

Muitas das infraestruturas de saúde existentes, como unidades hospitalares, centros de saúde, maternidades e centros epidemiológicos, estavam totalmente devastadas. Durante a missão lançaram-lhe o desafio de fazer uma “avaliação do grau de devastação das infraestruturas na área da saúde” e, posteriormente, elaborar um relatório destinado aos países que se propunham ajudar, como Portugal, para estes “poderem ceder ajuda naquilo que eles efetivamente precisavam”. Para além disso, acompanhou e garantiu o circuito do medicamento desde Portugal até Moçambique, fez a doação dos medicamentos, dispositivos médicos e também de alimentos, vacinou a população portuguesa e alguma população moçambicana mais vulnerável no Consulado da Beira e ajudou no tratamento de feridas.

 

Tudo o que possas fazer é sempre positivo

Quando visitou algumas aldeias, também teve a oportunidade de tratar da purificação da água para consumo humano Esta tarefa, embora não planeada, surgiu quando navegava no rio Búzi e observou “muitas pessoas a beber água do rio” e, como esta água não era potável, muitas estavam com cólera, tinham doenças infeciosas e estavam com muita diarreia e desidratadas. Inicialmente, o tratamento da água foi feito através de máquinas portáteis e, posteriormente, máquinas maiores que têm de estar estacionadas. Foi feita também uma doação de 500 quilos de hipoclorito de cálcio, que serve para o tratamento de água potável. Como o Major João Roseiro explicou, nestes contextos “é tudo diferente e inesperado”, destacando que, ao partir para esta missão, “o grau de incerteza era muito grande”. O farmacêutico é obrigado a adaptar-se constantemente a situações imprevistas que possam surgir neste tipo de missão e desempenhar certas funções que podem não estar dentro do âmbito das competências inerentes à sua profissão.

“Tudo aquilo que tu possas fazer, mesmo que tenha alguma margem de erro, é sempre positivo.”, referiu João Roseiro. E é nestes contextos, em que há um profundo desequilíbrio entre as necessidades e a oferta, que a atuação da equipa pode fazer toda a diferença: “Eu vi que as pessoas tinham uma necessidade gigante e toda a água que nós pudéssemos purificar, mesmo não estando completamente purificada, nós tínhamos a certeza que era muito melhor do que aquela que eles estavam a consumir”.

Depois desta projeção rápida de recursos em que João Roseiro e a sua equipa deram um primeiro apoio e chegaram a zonas mais remotas, como no caso de algumas maternidades e centros de saúde que estavam mais isolados, começaram a chegar equipas mais robustecidas de material que se mantiveram no terreno durante mais tempo e começaram a dar outro tipo de apoio. Nestas últimas constam o INEM e a Operação Embondeiro, criada pela Cruz Vermelha Portuguesa em colaboração com a Médicos do Mundo.

 

INEM apoia Moçambique

“Logo no dia em que fomos certificados, fomos também acionados”, conta Maria da Luz Rodrigues, farmacêutica do INEM. No mesmo dia em que o módulo de emergência médica PT EMT Tipo1 fixo foi certificado pela Organização Mundial de Saúde, o INEM mobilizou-o na sequência da sua ativação pelo Mecanismo de Proteção Civil da União Europeia. Durante um mês, foram enviados 52 profissionais, divididos em duas equipas, para operacionalizar este módulo, vulgarmente conhecido por hospital de campanha.

Para além das atividades clínicas desenvolvidas no próprio hospital de campanha, foi dado um apoio ao centro de saúde de Mafambisse, na província de Sofala. Este apoio consistiu na melhoria das condições das áreas de internamento, de consultas externas e da sala de partos e também numa colaboração direta com os profissionais do centro de saúde.

Joana Fernandes e Maria da Luz Rodrigues, ambas farmacêuticas do INEM, ficaram encarregues da gestão da farmácia do hospital de campanha, abastecendo todos os serviços. Também realizaram ações de formação junto dos farmacêuticos do centro de saúde, centradas no armazenamento de medicamentos, na preparação de unidoses, na higienização das mãos e superfícies e na separação de lixo. Orientaram ainda a organização da farmácia do centro de saúde de Mafambisse, após definirem um sistema de organização mais apropriado.

Joana Fernandes, farmacêutica da primeira equipa mobilizada, deparou-se com “muitas infeções, principalmente dérmicas e feridas” para as quais teve que preparar uma solução desinfetante. “Em ambiente humanitário, o farmacêutico tem que ser muito mais polivalente”. É um profissional por si só já polivalente, mas neste contexto tem de mostrar esta faceta de forma mais constante e decisiva e tem de se saber desenvencilhar com os meios existentes. Durante a sua missão, Joana Fernandes também promoveu a educação para a saúde através de “intervenções nas escolas”. Abordou tópicos como “a higiene das mãos, os cuidados na ingestão da água e a importância das redes mosquiteiras”.

A realidade em Moçambique é muito diferente da europeia. Maria da Luz Rodrigues, a farmacêutica mobilizada na segunda equipa do INEM, contou que tentaram, entre outras coisas, “proporcionar medicação crónica que os doentes deveriam fazer e que não existia”.

O farmacêutico tem igualmente um papel relevante na prevenção da “terceira catástrofe”, terminologia adotada pelo Tenente Coronel farmacêutico Paulo Cruz. A terceira catástrofe ocorre quando há “uma disrupção no fornecimento tradicional de medicamentos”, o que provoca uma agudização de um número elevado de doenças crónicas, ou seja, “os doentes crónicos controlados passam a ser doentes agudos”. “Esta compreensão de que a doença crónica se mantém crónica, se for controlada, é muito importante em ambiente de catástrofe porque retiras logo grande parte da população”, referiu ainda o Tenente Coronel.

Tanto Joana Fernandes como Maria da Luz Rodrigues referiram que “o papel do farmacêutico é extremamente importante na gestão, alteração e aconselhamento terapêutico” dos medicamentos e dispositivos médicos durante este tipo de missões. “Quando não existe nenhum dos medicamentos que os médicos querem” o farmacêutico faz o aconselhamento de alternativas terapêuticas. Aquando deste aconselhamento, também tem em conta o ajuste e a validação das doses. Junto dos doentes faz igualmente o “aconselhamento e o acompanhamento farmacoterapêutico, até crónico”.

Neste cenário, foi importante uma boa coordenação entre as duas equipas do INEM, fundamental para a gestão dos medicamentos e dos dispositivos médicos. Após a comunicação para Portugal das “patologias e necessidades major que o hospital estava a receber, os gastos mais evidentes numa área ou noutra”, foi feito um reajustamento dos recursos enviados para Moçambique para a segunda missão “de acordo com aquilo que tinha sido gasto ou as necessidades que se tinham constatado na primeira”, contou Maria da Luz.

 

Planeamento é fundamental

O “trabalho muito complexo de preparação” levado a cabo antes da missão é “fundamental para que nada falte durante a mesma e para que, no final, todos os recursos sejam doados de forma adequada”, evitando a sua destruição. Pois é durante esta fase que os medicamentos e dispositivos médicos a ser utilizados na missão são adaptados “não só às necessidades, mas também à legislação e às práticas locais, assim como às patologias presentes naquele local, naquele país em concreto”.

De facto, “um bom planeamento, uma boa gestão, uma boa preparação, é o que eu diria ser a chave de uma capacidade de resposta eficiente para uma missão”, explica Maria da Luz Rodrigues.

O Tenente Coronel Paulo Cruz referiu também a importância da fase de preparação e a capacidade de “jogar por antecipação” que lhe é inerente, algo que o farmacêutico tem de ter no seu leque de competências.

O farmacêutico tem também um papel importante na gestão das doações, ou seja, “fazer o papel de interface entre os bens existentes, que vêm das doações, e as farmácias e os doentes.”, conta o Tenente Coronel Paulo Cruz. Tem também a responsabilidade de gerir a doação dos medicamentos e dispositivos médicos que sobram no final das missões, segundo as diretrizes da OMS.

“Todos nós, à nossa maneira, acabámos por deixar ali a nossa marca. Foi uma grande experiência”. A coesão das equipas é um fator decisivo para uma atuação eficaz nestes contextos como referiu a Doutora Maria da Luz, que mencionou “muito espírito de solidariedade entre nós pares, entre nós farmacêuticos, quer italianos e espanhóis e até entre nós portugueses (…) e sentirmos que somos um só e somos igualmente importantes independentemente de quem seja, da sua categoria profissional, da sua atividade”.

 

Operação Embondeiro dá resposta ao Ciclone Idai

Rafaela Silva, que chegou a Moçambique passados três meses após o início da missão denominada Operação Embondeiro, referiu que não encontrou “um cenário tão dramático quanto era no início”.

“Eu sempre quis muito fazer missão, mas sempre com o bichinho de fazer missão enquanto farmacêutica”, contou. No entanto, sentiu dificuldade em ingressar neste caminho pois sentia “que não havia assim tantas oportunidades para fazer uma missão”.

Disse que os 5 anos que esteve na Cruz Vermelha Portuguesa, na emergência pré-hospitalar, foram uma ótima preparação para adquirir o mais importante numa missão, “a capacidade de fazer muito com pouco e a resiliência de nem sempre termos ao nosso alcance aquilo que precisávamos para resolver as situações”.

Rafaela Silva foi responsável pela farmácia do hospital de campanha da Médicos do Mundo, que funcionava numa tenda, instalada junto do centro de saúde de Macurungo, na cidade da Beira. O papel polivalente do farmacêutico no contexto de ajuda humanitária e a capacidade de resiliência e adaptação constante estão patentes no seu testemunho. Durante a missão, para além da dispensa de medicamentos em ambulatório na farmácia, também fez o acompanhamento de alguns casos de feridas e queimaduras mais graves, e realizou sessões na comunidade sobre medidas de etiqueta respiratória e uso da máscara. “Curiosamente, no ano seguinte começa uma pandemia, mas naquela altura a preocupação era a tuberculose”. O uso de métodos contracetivos orais e de preservativo para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, a boa higienização das mãos para minimizar a propagação de certas doenças como a cólera foram outros temas apresentados à comunidade durantes estas sessões. Realizou ainda um teatro de marionetas com materiais doados para as crianças do bairro para promover bons hábitos de higiene, fez um workshop de primeiros socorros e rastreios de tensão arterial e glicemia aos colaboradores de um jornal local e ajudou a enfermeira pediátrica a salvar dois bebés em perigo.

A experiência em contexto humanitário enriquece o farmacêutico tanto a nível profissional como pessoal. “Aquilo que eu senti desde o início até ao fim da missão, e que muitas vezes não sentimos no nosso dia a dia, é que efetivamente o meu papel foi ali valorizado […] Acho que foi onde fiz mais a diferença e é esse o sentimento de missão cumprida que trazemos quando regressamos”, refere Rafaela Silva.

Também o Tenente Coronel Paulo Cruz falou sobre a experiência muito pessoal que retirou desta missão, pois, devido à proximidade cultural e linguística do nosso país com Moçambique, “chegar a aldeias longínquas e ouvir falar em português é uma coisa impressionante; e a quantidade de crianças a falar em português, parece que estamos em casa, é uma coisa muito pessoal”.

O ciclone Idai é um dos muitos exemplos de como um desastre aumenta a vulnerabilidade já existente das populações, diminuindo consideravelmente a resiliência das mesmas.

Maria da Luz Rodrigues referiu que foi curioso verificar que, das 1656 pessoas que foram assistidas no módulo de emergência médica do INEM, ao contrário do que era espectável, apenas 195 sofriam de patologias relacionadas com trauma. Por outro lado, “a maior parte das assistências médicas, que foram cerca de 1203, deviam-se a problemas de saúde de menor gravidade”, o que refletiu “a pobreza que o país vive e as carências que tem e que nestas situações acabam por agudizar muito mais”. Cada missão é diferente e exige uma preparação diferente dos profissionais, no entanto, estes “têm que ter outras perspetivas, além daquele socorro imediato” decorrente do desastre.

 

Médicos sem Fronteiras no mundo

Maria Filipa Pereira desempenha as suas funções nos Médicos Sem Fronteiras (MSF) há cinco anos. Para além da filantropia que sente ao realizar missões, encontrou nesta “profissão” de farmacêutico humanitário “o perfil mais completo dentro da profissão do farmacêutico (…) Consigo ter alguma experiência em várias áreas da farmácia em que, se as quisesse ter em Portugal, teria que passar por várias profissões”.

Começou a sua jornada no mundo humanitário na Grécia. Aglomerou as farmácias de campanha que a Cruz Vermelha Internacional tinha deixado em todos os campos de refugiados e transformou-as em farmácias de cuidados de saúde primários, “mini-centros de saúde”. Desta forma, possibilitou uma primeira triagem de doentes e refugiados, o que aliviou a pressão colocada sobre o sistema nacional de saúde grego, pelo enorme influxo destes.

Desde então participou em cinco missões com os MSF, na República Democrática do Congo, no Sudão do Sul e do Norte, em Moçambique e em Angola, como responsável técnica farmacêutica da missão inteira. É da sua responsabilidade, ao ler o traçado epidemiológico da população, fazer um portefólio de medicamentos adaptado a este perfil. “Tenho que pensar, a longo prazo, quais os medicamentos que têm que estar naquele hospital, clínica ou centro de saúde e prever, a seis meses, quais vão ser as necessidades de determinados medicamentos. (…) A partir daí tenho de fazer a gestão de uma farmácia central, na capital do país, que depois vai enviar os medicamentos todos para estes hospitais, à medida que vão sendo necessários”. Isto compreende a área da distribuição farmacêutica e também toda a área de logística internacional, como a importação e a regulamentação e inclui as relações que se podem estabelecer com o Ministério da Saúde.

Maria Filipa Pereira reforçou a noção de que o farmacêutico e todos os profissionais de saúde que trabalham nestes contextos devem estar em constante evolução para conseguirem lidar com todas as situações que possam surgir da forma mais apropriada. “Obviamente, ser farmacêutica deu-me as ferramentas para fazer isto tudo, nomeadamente reconhecer o que é preciso clinicamente para um determinado programa, mas há muito que também vem da prática. Uma pessoa também tem de estar sempre em constante aprendizagem e evolução”, contou.

Na sua opinião os farmacêuticos são “absolutamente incomparáveis (…) na avaliação e gestão clínica quando os recursos são limitados”. Os médicos têm hábitos de prescrição muito específicos, “se eu tiver que lidar com uma médica norueguesa e uma médica canadiana” podem pedir duas opções de tratamento completamente distintas para a mesma doença. O farmacêutico é o único que consegue pôr todos os pedidos no mesmo nível e avaliar “qual a terceira alternativa, que é a que me deixam importar, e que podemos usar num determinado protocolo clínico”.

Para além disso, o farmacêutico consegue interligar a parte clínica com a parte logística, conseguindo fazer “o planeamento das estruturas de saúde para que elas funcionem, porque, na verdade, o médico pode diagnosticar, mas se não tiver medicamentos não trata…” e “a gestão dos recursos é muito mais eficiente e muito mais célere” quando entregue ao farmacêutico, que deve ter na sua posse todo o conhecimento da parte técnica da dispensa de medicamentos e também do sistema de qualidade dos medicamentos.

Mesmo em contexto humanitário, Maria Filipa considera que “a essência da profissão de farmacêutico permanece a mesma”, embora “haja certos desafios próprios do contexto de missão, como o acesso limitado a recursos e o elevado sentido de responsabilidade”.

Do Iraque a Timor

Ana Catarina Duarte tem experiência em missões no âmbito da cooperação para o desenvolvimento nas Bahamas e em Timor-Leste, e de ajuda humanitária no Iraque. “A ajuda humanitária compreende um conjunto de ações levadas a cabo em contextos de absoluta urgência, pelo que a sua atuação é focada em períodos de tempo relativamente limitados”. E a cooperação para o desenvolvimento é uma intervenção de longo prazo que dá resposta a problemas estruturais sistemáticos, a fim de aumentar a sustentabilidade e resiliência individual e social em países em desenvolvimento. Tem como objetivo contribuir para a erradicação da pobreza extrema, combater as desigualdades e a vulnerabilidade crónica e reforçar a autossuficiência das populações.

No Iraque, as missões foram realizadas sob a alçada da Première Urgence Internationale. Na primeira missão projetou o departamento de farmácia que incluiu “o treino, supervisão, avaliação e delegação de tarefas dos farmacêuticos das equipas móveis, dos centros de saúde e também dos que estavam a tomar conta da farmácia central, que era o armazém que distribuía para toda a missão”. Também ficou responsável pelo “aprovisionamento inteiro, (…) desde a encomenda, seleção dos diferentes fornecedores e seguimento da cadeia de frio”, assim como pela “administração para a entrada de medicamentos no país e do seu transporte até às cidades onde eram precisos,” e também ficou encarregue das encomendas de “kits que podiam ser disponibilizados muito rapidamente no campo” à OMS e às Nações Unidas.

A sua segunda missão permitiu “aumentar a literacia em saúde e melhorar a qualidade de vida da população, nomeadamente das mulheres”. Durante esta missão Ana Catarina Duarte geriu uma clínica de saúde sexual e reprodutiva que proporcionava um ambiente seguro às mulheres para, através de campanhas de sensibilização, abordar “tópicos muito tabu nestes contextos” como doenças sexualmente transmissíveis e contraceção. Também dinamizou uma atividade relacionada com exercícios Kegel para treinar o pavimento pélvico destas mulheres que “têm cinco, seis, sete, oito filhos de forma muito contínua e acabam por ter muitos problemas mais tarde, a nível de incontinência urinária”.

Nessa missão fez a gestão de dois centros de saúde que estavam dentro de campos de refugiados onde assegurou o recrutamento e treino dos profissionais de saúde locais, “nas áreas em que percebia que havia algumas lacunas”. Garantiu ainda a gestão do stock e a gestão dos doentes, que inclui “desde a triagem, até ao encaminhamento para o médico, farmacêutico e análises bioquímicas”.

Na sua última missão em Timor-Leste, incorporou a equipa da OMS responsável por promover a equidade em saúde, através da erradicação da filariose linfática, uma doença tropical negligenciada. Estas doenças afetam regiões cujo acesso a água potável, ao saneamento básico e a cuidados de saúde básicos e de qualidade é limitado. Ana Catarina ficou responsável pela identificação destes casos e pela distribuição massiva de antiparasitários, garantindo o acesso ao tratamento, avaliando ao mesmo tempo, através de um questionário, o nível de morbilidade de cada pessoa.

Desenvolveu ainda o patient pathway dentro do sistema de saúde timorense, assegurando a inclusão da filariose linfática no contexto de doenças crónicas nos centros de saúde porque “estes casos de filariose linfática podem ser crónicos, no sentido de, mesmo que não tenham a infeção ativa, têm problemas de movimento, dor, etc, e necessitam de seguimento médico”.

“A logística é um dos maiores problemas (…) no setor humanitário” explica. Daí a importância de ter “alguém muito bom na logística” e o farmacêutico, sendo “um logístico médico”, tem a capacidade de perceber o que é necessário comprar e onde o pode fazer de forma a satisfazer as necessidades da missão. Nesse âmbito, refere que fez também “a avaliação de fornecedores locais. Quando havia aquele desespero em que só tínhamos os medicamentos depois de quatro meses, precisávamos de comprar localmente”.

Cooperação na Guiné-Bissau

Manuela Pimenta tem experiência na área de cooperação para o desenvolvimento na Guiné-Bissau, área pela qual mostra uma verdadeira paixão.

Nas primeiras missões que realizou, ligadas à tese que desenvolveu sobre algumas causas da mortalidade materno-infantil, constatou que havia muitos problemas subjacentes a estas causas que eram mais graves e que eram a verdadeira origem da mortalidade que se verifica nestes países. Entre eles destacou a pobreza e a falta de meios de diagnóstico.

Desde então, para promover o diagnóstico e consequentemente o tratamento, tem apostado em tornar os laboratórios low cost com “aparelhos (…) robustos, baratos, de fácil calibração e manuseamento, porque não podem avariar pois não há técnicos que os arranjem”. Deu ainda formações a nível de controlo de qualidade e implementou novas técnicas de diagnóstico. No âmbito do ProMeQuaLab, projeto de controlo de qualidade laboratorial do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, trabalha para uniformizar “a linguagem, as técnicas, os resultados e os valores normais” de diagnóstico através do desenvolvimento de “manuais de colheitas e um manual de atendimento para todos os PALOP”. Nos últimos anos, tem sido requisitada ao nível de consultoria para os hospitais da região, de forma a passar o conhecimento de como tornar o diagnóstico mais barato nestes hospitais.

Ucrânia recebe auxílio

Em 2022, voluntariou-se para fazer a gestão das doações para enviar para a Ucrânia e apercebeu-se “que nós farmacêuticos somos solicitados para tudo” pois era-lhe pedida opinião sobre a gestão de todos os produtos que chegavam ao armazém. Realçou a relevância do farmacêutico na gestão das doações no país dador, principalmente no que toca aos medicamentos e dispositivos médicos, para poupar tempo e recursos no país recetor e também para a gestão ser feita de forma mais rápida. “Com os medicamentos doados, os voluntários demoravam muito porque punham-se a ler, enquanto que para os farmacêuticos já quase era automático”. “Houve uma mobilização enorme, a nível da recolha, da entrega, da monitorização, ou seja, ver se estava tudo em condições e dentro da validade”, conta.

Manuela Pimenta destaca “a grande capacidade de adaptação e resiliência” que é necessário ter nestas situações porque “nós aqui a trabalhar temos tudo, quando digo tudo é água potável, luz elétrica, temos medicamentos, enquanto que quando estás no terreno não tens rigorosamente nada”. Também o pensamento crítico e resolução de problemas têm de estar presentes porque “quando estamos a planear alguma coisa, há sempre um problema a montante e temos que ter essa mente aberta”. Por exemplo, se é necessário um gerador, “tens que saber se o gerador tem gasóleo, se há alguém que pode ir buscar o gasóleo, se há dinheiro para o gasóleo”, contou.

À semelhança de outros testemunhos, entende que, para um farmacêutico humanitário ser bom, é necessário “ter muita bagagem”. Para além do conhecimento técnico, o farmacêutico tem “de ter muita formação, ser polivalente. Não pode dizer: ‘isso não é tarefa do farmacêutico’ nunca”.

Também é importante a necessidade de preparação física, adotando todas as medidas de prevenção, como ir à consulta do viajante e fazer as profilaxias necessárias. Realçou igualmente a importância da preparação mental e a mentalização nestes contextos porque o conhecimento “só é útil se estivermos capazes de o utilizar”. “Há muitos mecanismos, cada um tem os seus, para lidar com a dor dos outros, para lidar com o sofrimento, com a falta de meios porque ver uma criança a morrer é muito difícil”. Ideia partilhada pelo Tenente Coronel Paulo Cruz: “Nós, se estivermos aterrorizados, não funcionamos”. Referiu ainda que “aprendi imenso e isto é uma riqueza, mas tem impactos a nível pessoal enormes”.

Para Manuela Pimenta esta intervenção “já não é um gosto, já é uma missão de vida, é um legado que eu quero deixar”.

Capacitação de equipas

A capacitação das equipas de saúde locais foi uma realidade transversal a todas as missões realizadas. Efetivou-se através de formações diversas, com especial foco no uso e prescrição racional do medicamento. Numa cultura onde “o uso de antibióticos (…) está muito enraizado”, como refere Ana Catarina Duarte, a tarefa do farmacêutico revela-se desafiante e “a linha temporal com que se trabalha (…) é mais lenta porque estamos a falar de uma mudança processual e muitas vezes cultural, que às vezes é o mais difícil de gerir”, acrescenta Maria Filipa.

Um dos grandes objetivos da intervenção das equipas de saúde e do farmacêutico, em particular, é “criar condições, ajudar os profissionais locais no desenvolvimento de competências e da sua própria autonomia porque se eles não forem autónomos, vão estar sempre dependentes da missão humanitária”. “Uma missão humanitária tem de contemplar sempre uma continuidade, tem sempre que haver uma passagem de testemunho”, defende Maria da Luz Rodrigues. De facto, “o nosso objetivo não era nunca substituir os profissionais locais, mas sim trabalhar em conjunto com eles” pois “não adianta deixarmos lá determinado material, se eles depois não souberem usá-lo”.

Esta vertente pedagógica é muito importante porque se a equipa “vai e substitui os recursos locais, cria um vício, uma dependência da ajuda externa e, às vezes, esta dependência vai fazer pior do que a ajuda em si”, reforça Ana Catarina Duarte.

Falta formação para farmacêuticos humanitários

Todos os farmacêuticos que ouvimos reforçam a importância destes profissionais nas equipas de intervenção em contexto humanitário. Como justificar então o facto do seu papel ser tão pouco conhecido?

De acordo com os vários testemunhos, há uma opinião generalizada de que um dos motivos será o pouco conhecimento acerca do papel do farmacêutico nos diferentes campos onde pode intervir e a falta de divulgação, nomeadamente junto das organizações internacionais.

No próprio universo farmacêutico, a vertente humanitária da profissão tem pouca visibilidade. “Esta área na verdade foi sempre vista como um parente pobre (…) há muita gente que não conhece ou que nem sequer imagina um farmacêutico numa missão humanitária. Até hoje poucos se lembraram que tem de haver farmacêuticos nas missões humanitárias porque estas implicam tratamentos e medicamentos”, refere a Doutora Maria da Luz. “Não há formação nem capacitação dos farmacêuticos que possam dar resposta a este tipo de situação e, até hoje, nunca se verificou a pertinência de potenciar esta formação do ponto de vista do ensino.” Em comparação, tanto os médicos como os enfermeiros já vão para o curso com alguma expectativa humanitária.

As pessoas e os farmacêuticos, em particular, não associam o seu papel na intervenção humanitária a uma profissão porque não é remunerada, não há uma entidade patronal e não há uma carreira, havendo uma priorização das áreas mais oficiais pelos farmacêuticos.

Para além disso, os médicos e os enfermeiros têm um papel mais prático e mais clínico e, por isso, mais visível, ao contrário do farmacêutico cujo desempenho acaba por estar muito ligado à área do suporte, da preparação e da logística, fazendo com que fique apenas na área de backoffice e por vezes com uma intervenção reduzida no terreno.

Para alterar este cenário, “cabe ao próprio farmacêutico sair um bocadinho da sua área de conforto, mostrando que é uma área de extrema responsabilidade” imprescindível no apoio em cenários de catástrofe.  Para a dignificação da profissão em contexto humanitário é importante que o farmacêutico “se enquadre mais naquilo que é a sua área, a do medicamento, e a partir daí demonstrar valor para todos. “Não se trata de substituir ninguém, mas de dar visibilidade e atribuir valor. E se fizer isso, consegue encaixar-se perfeitamente na equipa multidisciplinar e as pessoas reconhecem o seu trabalho no terreno” defendeu o Major João Roseiro. Para Manuela Pimenta “devia haver um farmacêutico onde há medicamentos e onde há pessoas, não é só onde há medicamentos”.

O Tenente Coronel Paulo Cruz referiu que atualmente a intervenção do farmacêutico em contexto humanitário “parte muito de iniciativa individual, com exceção dos militares, em que é uma incumbência de serviço”.

“Quem, de facto, participa numa missão humanitária, não tem que ter só a capacidade técnica, também tem que ter vocação para isso e ter o coração aberto para muitas coisas”, mencionou Maria da Luz Rodrigues. “Claro que há sempre o medo, mas a riqueza que se traz, vale sempre o esforço”, reforça o Tenente Coronel Paulo Cruz.

 

Reportagem que resulta da tese de mestrado em Ciências Farmacêuticas de Mariana Jacob Leitão, intitulada: “A intervenção do farmacêutico em contexto de ajuda humanitária e/ou de cooperação para o desenvolvimento”.

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