Na encosta da Serra da Estrela, onde as fábricas outrora pulsavam como o coração industrial do país, a Covilhã assiste hoje à erosão silenciosa de sonhos e certezas. A cidade, marcada por um passado de luta operária e solidariedade, vê-se agora dividida entre memórias de conquistas coletivas e o avanço de discursos que alimentam o ressentimento. Nesta terra de lã e neve, onde as ruas contam histórias de resistência, o presente é feito de inquietação, e o futuro, de interrogações difíceis.
O calor de junho faz ondular o asfalto na Rua Marquês d’Ávila e Bolama, enquanto Maria Fernandes, 48 anos, cigana e covilhanense de gema, enfrenta de cabeça erguida o vento agreste que desce da serra. “Chamam-nos parasitas? Quem nunca passou fome
não sabe o que é lutar todos os dias”, apontando para o filho, Tiago, de 14 anos, que carrega no corpo as marcas de insultos e agressões na escola secundária local. “Desde que o Chega começou a aparecer na televisão, sinto os olhares mudarem. No supermercado, já me negaram o troco. Na farmácia, disseram à minha mãe que não atendiam ciganos.”
Mais abaixo, no Centro de Saúde da Covilhã, Manuela Silva, 56 anos, espera há mais de três horas por uma consulta. “Prometeram mais médicos e melhores condições. Mas ninguém veio ver as mães que desmaiam de cansaço nos corredores. Falam de
défice e de Bruxelas, mas esquecem quem aqui vive”, lamenta. Segundo dados do INE, 66% dos jovens entre os 25 e os 34 anos continuam a viver com os pais em Portugal, reflexo de salários baixos e rendas incomportáveis. Na Covilhã, onde o desemprego
jovem ronda os 18%, a esperança é um bem escasso.
Leonor Matos, 28 anos, neta de operários da antiga Fábrica de Panos, guarda como relíquia as memórias de abril de 1974 que lhe foram contadas pela avó. “A minha avó dizia-me: ‘Quando os pobres se dividem, os ricos ganham’. Hoje, vejo colegas a acreditar em promessas fáceis. Mas foi a luta coletiva que nos trouxe direitos. Tenho amigas que trabalham no call center e recebem pouco mais que o salário mínimo.
Quando o Chega votou contra o aumento do salário mínimo, fomos distribuir folhetos à porta das fábricas. Aqui, onde há memória, o partido não cresce tanto.” Pedro Marques, 18 anos, estudante do ensino profissional na Escola Secundária Quinta das Palmeiras, mostra o telemóvel: “O TikTok do Chega é viciante. O Ventura fala como ninguém. Diz que se continuamos com os políticos de sempre ele vão nos roubaram o futuro. Em três dias, senti-me parte de um movimento. O PS faz vídeos longos, ninguém vê. O Chega mete vídeos curtos, diretos, e toda a gente comenta.”
Estudos do ISCTE confirmam: o Chega lidera a interação digital entre os partidos, sobretudo entre os mais jovens, com linguagem acessível e apelo emocional.
António Guerra, 74 anos, antigo líder sindical das fábricas da Covilhã, recorda com amargura: “Em 1974, milhares de homens e mulheres pararam o país. Lutámos por subsídios e salários dignos. Agora chamam-nos parasitas? Fomos nós que construímos
esta cidade e este país. O Chega só aparece para apontar o dedo, nunca para ouvir.” Guerra aponta para as ruínas da antiga fábrica, hoje ocupadas por silvas e silêncio. “Aqui havia vida. Agora há abandono e medo.” O contexto nacional agrava-se com a crise climática: Portugal é, segundo a Agência Europeia do Ambiente, um dos cinco países da União Europeia mais afetados por secas
severas. Na Covilhã, a falta de água já obriga a restrições no verão, afetando agricultores e pequenos produtores. O poder de compra, de acordo com o Banco de Portugal, cresceu menos de 5% na última década, muito aquém do necessário para
acompanhar o custo de vida.
João Marques, atual vereador da Câmara Municipal da Covilhã e ex deputado da Assembleia da Républica não tem dúvidas: “Quando o discurso político legitima preconceitos, a violência cresce. Vemos mais denúncias de discriminação, sobretudo contra ciganos e imigrantes. É um fenómeno nacional, mas em cidades como a
Covilhã, onde a comunidade cigana é parte da história local, o impacto é ainda mais doloroso.”
Alberto Vieira, 74 anos, reformado da CP, confessa o seu dilema: “Sempre fui contra a extrema-direita. Mas precisei de uma prótese e disseram-me: ‘Espere dois anos ou pague oito mil euros’. O PS fala de SNS forte, o PSD de eficácia. Só o Chega grita: ‘Isto
é uma vergonha!’ Por vezes mentem, mas ao menos denunciam o que ninguém quer ver.”
Às portas das autárquicas, Henrique Paraíso, antigo militante do Chega na Covilhã, antecipa: “No Alentejo, o Chega pode conquistar câmaras. No Algarve, fará alianças à direita. No Norte, onde sindicatos e associações são fortes, a barreira mantém-se, se
os partidos tradicionais não errarem.” O voto de protesto é predominante: segundo o ICS/ISCTE, mais de 40% dos eleitores do Chega votam por desilusão, não por identidade.
No Bairro do Cabeço, Maria lê a carta do filho emigrado: “Mãe, aqui na Suíça ninguém me chama cigano. Sou só o Carlos, o soldador.” Na varanda de Alberto, uma fotografia da Revolução dos Cravos recorda: “Lutei pela liberdade. Agora apoio um partido que
a põe em risco. A ironia dói, mas a dor de hoje é maior.”
No centro da tempestade, a pergunta persiste: pode a Covilhã, cidade de tantas lutas e memórias, reconciliar-se quando as suas feridas são usadas como arma política? Talvez a resposta esteja no silêncio que desce sobre as esplanadas ao fim do dia – onde
já não se fala de fado ou futebol, mas do medo que se instalou à mesa ao lado.