Nem uma menos

O sofrimento tem nome, idade e os números que falam por si. Em Belmonte, Covilhã e Fundão, a Rede Violência Zero, da CooLabora, tem sido o porto seguro para centenas de vítimas.

As vidas por detrás dos números

“Maria, nome fictício, tinha 52 anos à data do pedido de ajuda na CooLabora, após frequentes episódios de idas à urgência e tentativas de suicídio. Logo depois do casamento, as violências por parte do marido começaram com episódios de espancamentos, mesmo durante a gravidez ou até quando a filha bebé ao colo. O álcool surge na vida de Maria de forma inconsciente, derivado das agressões, o desamor e o desrespeito por parte do marido. Com o álcool anestesiava a raiva e a culpa que sentia. Era já visível aos olhos de todos a sua degradação a nível emocional, cognitivo e físico. Os consumos eram assim mais uma forma de morrer gradativamente. Ninguém a ouvia porque era o álcool a falar. O pedido de ajuda de Maria veio muito tarde, mesmo muito tarde. O alcoolismo de Maria era só a forma visível de dizer, “já não aguento mais”.

“D, de 14 anos. Jovenzinho de pais divorciados, atualmente vive com a mãe. O jovem esteve exposto, desde tenra idade, a situações de violência dos pais. O jovem responde com violência, embora que impulsiva, às situações de adversidade em diversos contextos, nomeadamente na escola e em casa”.

“A, de 14 anos. A jovem é acompanhada no âmbito da Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Apresenta distúrbio alimentar. Nas diligências efetuadas, foi possível verificar a existência de violência psicológica do pai para com a mãe e para com A. A mãe da menina foi também encaminhada para a doutora Diana da CooLabora”.

 

Os números falam por si

Estes são apenas alguns dos muitos rostos da violência doméstica, quer de pessoas adultas, quer de crianças e jovens. É perante esta realidade “complexa e dolorosa” que a rede Violência Zero, que existe desde 2010 integrado na cooperativa de intervenção social Coolabora, tem como principal missão compatibilizar as atuações entre entidades e evitar que a vítima tenha “de andar de serviço em serviço à procura de solução” na região de Belmonte, Covilhã e Fundão. Os apoios que oferecem às vítimas são variados, desde informação jurídica e apoio psicológico, até ao encaminhamento social, com articulação com outras entidades, nomeadamente serviços de saúde, forças de segurança e até serviços de emprego. De acordo com os dados mais recentes do Gabinete de apoio às vítimas de violência doméstica da CooLabora, foram realizados 1374 atendimentos em 9 meses. Há mais 94 novos processos abertos, dos quais 78 são mulheres e 16 são homens. Ao todo, as mais afetadas são mulheres, cuja faixa etária mais atingida é a dos 36-55 anos. Importa ressaltar que 69,2% dos casos envolvem violência física e psicológica. Contudo, a violência sexual continua a atingir números nunca vistos (21,1%).

A violência também é passada de geração em geração. Este ano, estão em acompanhamento 114 crianças e jovens, dos quais 65,7% são meninas e raparigas. Até à data, foram realizados 691 atendimentos.

Dados referentes ao Gabinete de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica da Rede Violência Zero (Coolabora).

 

“A violência não é algo do passado”

Segundo a cooperadora e cofundadora da CooLabora, Graça Rojão, o maior desafio é a desvalorização da violência doméstica e de género “como se fosse algo do passado e não fosse algo muito presente entre nós”. O principal desafio é quebrar esse mito e é fazer com que as pessoas tenham noção da dimensão do fenómeno. Um outro desafio passa pela denúncia, isto é, a subnotificação de casos. De acordo com a cooperadora, as vítimas têm “muito” receio em expor a sua situação de violência junto das instituições e, portanto, são “poucas” as pessoas que pedem ajuda. Ainda que tentem retirar a invisibilidade das vítimas de violência doméstica, com uma equipa de apoio à vítima de quatro elementos, o sistema “está a falhar”. Para si, torna-se necessário “mudar muito”, nomeadamente na formação dos magistrados e das magistradas no sentido de identificarem aquilo que é violência doméstica e de género.

Apesar de os números de pedidos de ajuda serem diários e estarem a aumentar, para a cofundadora “pode ser positivo, pode ser sintoma de que as pessoas reconhecem a violência e não estão disponíveis a viver numa vida com violência”.

Já para a criminóloga, Diana Silva, os fatores para a manutenção na relação abusiva podem ser de várias ordens, desde a dependência financeira da pessoa agressora, desde os filhos pequenos que dificultam toda a autonomização da vítima, mais também o facto de a vítima estar com um impacto psicológico “tão grande, que se sente tão desapropriada de si, da sua autoestima, não acreditando que vai ser capaz de sair daquela relação e conseguir sozinha quebrar o ciclo de violência”. Já nas crianças e nos adolescentes, a violência afeta no rendimento escolar, na manutenção das amizades e comportamentos “extremos autolesivos”, como tentativas de suicídio.

 

Para contactar os serviços de apoio da Rede Violência Zero pode fazê-lo pelo telemóvel: 963603300, ou por e-mail: apoiovitimacoolabora@gmail.com.

 

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