Jogou futebol durante muito tempo nos escalões de formação e agora continua ligado como fisioterapeuta. Sempre foi um sonho estar ligado ao futebol?
R: Sim, sempre joguei futebol, entre os 5 e os 25, mais ou menos, quando terminei a minha licenciatura em fisioterapia. Na altura, tive que escolher entre a vida de futebol e a fisioterap. Muitas vezes são realidades conciliáveis, mas, infelizmente, não no meu caso. Não podia jogar ao domingo e ter jogos para acompanhar como fisioterapeuta no mesmo dia.
Na verdade, sempre tive interesse pela área desportiva e, tendo jogado futebol, há aquela velha história, daquele muito bom jogador, que tem azar e sofre uma lesão. Não era bem o meu caso, era um jogador mediano, mas tive ainda assim algumas complicações com lesões que me fizeram ali por volta dos 17, 18 anos, escolher a minha via profissional.
A fisioterapia não foi o primeiro curso em que estive. Estive noutro curso, mas depois pedi mudança, principalmente, porque sempre tive interesse em estar ligado ao contacto com atletas. As minhas outras alternativas eram, por exemplo, a área das ciências do desporto, mas sempre tive interesse nesta ligação umbilical com a prática desportiva. Em particular, com o futebol, onde tenho a sorte de trabalhar hoje.
Já passou por algumas equipas como fisioterapeuta. Há diferenças nesse gabinete entre clubes? Como funciona?
R: Estar presente na medicina esportiva de alta competição fez-me entender que nem sempre existem boas práticas. Há um viés de autoridade muito forte. Muitas das vezes, em medicina desportiva, não há propriamente esta meritocracia de que quem tem mais competência chega mais longe. Muitas vezes são questões de comunicação. Obviamente que a relação interpessoal também é sempre muito importante.
Felizmente, tive muita sorte pelos locais onde trabalhei. Estive no papel de clínico e coordenador, trabalhei com profissionais muito dispostos a prestar bons cuidados, em contextos como do Sporting Clube de Portugal.
Em termos, por exemplo, de níveis competitivos, já passei por praticamente todas as divisões do futebol português, não diria que há uma relação linear entre quanto mais acima se está, melhor se trabalha. Diria que é quase uma amostra aleatória.
Os números de lesões no futebol atual têm aumentado muito. Na sua experiência, não só como jogador, mas também como fisioterapeuta trabalhando num clube, consegue pontuar quais são as principais razões para esse fenômeno estar a crescer?
R: Consigo, mas não vai gostar. Disse que sim, que as lesões têm aumentado. Eu pergunto, tem certeza?
E como sabe? É natural que quanto maior for a cobertura mediática, mais fácil é ter acesso aos casos. No entanto, um dos problemas em Portugal é não haver levantamentos epidemiológicos contínuos, o que faz com que, quanto maior for a cobertura mediática, mais pareça que o número de lesões tenha aumentado.
Hoje em dia são diagnosticados mais miúdos com problemas de saúde mental. De certeza que é moda. Não, não. Obviamente que há uma sensibilização maior. Há uma abertura maior para se falar deste tipo de condição e no desporto é exatamente igual.
Obviamente com as devidas diferenças, mas o que acontece na medicina desportiva atualmente é muito mais fácil de se saber dessas lesões que os atletas tiveram. A comunicação social transporta para o grande público estas condições, é muito mais transparente do que era antigamente, por vários e bons motivos, mas esta é uma das minhas perguntas que é, será que de facto o número de lesões, pelo menos em Portugal, tem aumentado assim tanto?
Se me perguntar o que acho, eu concordo que estão a aumentar. Acredito que em Portugal também tenha havido um ligeiro aumento da tendência da incidência de lesões. Há vários problemas associados a isto. Algo importante que tem aumentado são as horas de exposição. Alguns dados, por exemplo, indicam que na Premier League, por exemplo, o nível da intensidade de jogo tem aumentado exponencialmente, isto pode ser outro dos fatores associados.
Uma das lesões que tem despertado maior interesse do público é lesão no ligamento cruzado anterior, no joelho. Esse problema, por exemplo, tirou o atual Bola de Ouro do resto da temporada. O que torna essa lesão tão grave e por que ela é tão difícil de ser tratada nos atletas?
R: Quando olhamos para a incidência dessa lesão, que o número de lesões por cada mil horas de exposição, normalmente, é esta a métrica, o número de lesões no cruzado é relativamente baixa.
Ou seja, a verdade é que não há uma incidência assim tão grande, quando olhamos para o panorama da prática desportiva. O problema é que, apesar da incidência ser relativamente baixa, o tempo de paragem associado é bastante extenso. E muitas das vezes, as consequências vão muito para além da perda da participação desportiva a curto prazo. Está associado, por exemplo, a lesão do cruzado aumenta o risco de artrose do joelho, por exemplo.
Fala-se muito que o jogador de futebol fica com os joelhos de 80 anos aos 40. Não é bem assim, mas há certos aspectos que aumentam o risco disto acontecer e uma delas é, por exemplo, o aparecimento da lesão do cruzado.
Para além destas questões da saúde, obviamente a perda de rendimentos associados à prática desportiva também é um problema. Se o atleta se abstém de praticar por uma lesão, muitas das vezes, perde a possibilidade de assinar contratos ou até a possibilidade de participar e render com o clube que me contratou.
Outra questão que muitas vezes é negligenciada como a ausência participação dos jogadores condiciona a sua saúde mental. Normalmente, os atletas, especialmente os de alta competição, associam a prática desportiva à sua personalidade, ou seja, é muito mais do que faço, mas sim, o que eu sou.
Quando o atleta deixa de poder participar, muitas das vezes perde uma parte da identidade e isto implica, obviamente, alterações na condição da sua saúde mental. Ou seja, e mais uma vez, pensem se for uma lesão de 7 dias para reabilitar, é relativamente tranquilo. O regresso acontece a curto prazo e, portanto, o impacto que tem na minha participação, mesmo social, é muito menor do que a ansiedade que me causa eu ter um processo de 9 a 12 meses que pior, não sei o resultado. É verdade que a maioria dos atletas de alta competição retornam à prática desportiva, mas ainda assim, há o risco de não conseguirem voltar.
No caso do prognóstico do retorno de uma lesão do ligamento de cruzado anterior, é muito pior do que muitas outras lesões. Ou seja, é por isso que se considera o ligamento cruzado anterior numa espécie de bicho-papão da medicina desportiva, porque tem uma série de consequências que vão muito para além de ter uma lesão qualquer.
Além do desempenho, a ocorrência de uma lesão dessa, se, por exemplo, mal curada, pode gerar um impacto na saúde depois de do fim da carreira?
R: Sim, sem dúvida. Os dados são contraditórios, mas ter uma lesão no joelho aumenta exponencialmente o risco de ter osteoartrose. Uma lesão tem muitas consequências a longo prazo. Há uns tempos, eu estava numa conferência em França e este foi um dos temas abordados: as complicações associadas à prática desportiva pós-aposentadoria.
E estava lá o Jeremy, jogou no Chelsea, no Real Madrid, no Middlesbrough. Perguntei-lhe: “O que é que tens feito? Então, o que tem doído?”, ou seja, a prática desportiva de alto nível está associada a complicação de saúde a médio longo prazo. Principalmente do ponto de vista musculoesquelético. Estas, digamos, as dores articulares e as complicações musculares são consequências comuns da prática desportiva de elite.
E a verdade é que eles compram esse risco e, em parte, esse é um dos motivos que os torna de elite. Pode haver atletas que seriam de elite, mas não compram o risco. Não sei se recordam do Gabriel Batistuta, avançado da Roma e da Fiorentina. Há relatos dele a dizer que ponderou, por exemplo, amputar a perna porque tem dores agoniantes no tornozelo. Outro exemplo é o Van Basten, que terminou a carreira aos 28 anos. Venceu duas Bolas de Ouro e, mesmo assim, terminou aos 28 porque não sentia que a condição física em se encontrava justificava o sucesso desportivo.
Agora fala-se do Luís Suárez, ex-Barcelona, Liverpool e Atlético de Madrid. Ele contou que nem consegue jogar com o filho no quintal porque as dores são tantas que ele toma injeções. Bom exemplo. Já sabemos, segundo a literatura, sendo uma prática contraindicada a médio longo prazo, por exemplo, injeções de corticosteroides.
Parece que, de facto, diminuem a dor associada à prática desportiva a curto prazo, mas quando olhamos a médio e longo prazo aumenta exponencialmente a osteoartrose articular. Então, devemos dizer que os atletas não devem tomar? Não somos nós que tomamos esta decisão, é uma decisão autónoma.
E a verdade é que no desporto existe uma cultura de risco e eles compram esse risco muitas das vezes e nós temos que estar lá para os ajudar a decidir e ajudar no futuro, mas esse é um bom tópico. Sabemos, quase de fonte segura, quase com 90% de certeza, número fictício, que eles após terminarem a carreira vão ter problemas de saúde.
E no futebol feminino, a lesão do cruzado anterior também é recorrente?
R: Essa é uma pergunta interessante. Não se tem tantos estudos nesta área sobre o futebol feminino quanto para o futebol masculino. É uma questão interessante e, para a qual eu não tenho resposta. Estou curioso para ver como o desenvolver do desporto feminino potenciará a medicina desportiva nos desportos femininos.
Acredito que isso terá benefícios para todo o universo da medicina desportiva. Inclusive, algumas jogadoras da Premier League Feminina queixaram-se, precisamente, deste número elevado de lesões no ligamento. Se o mesmo acontecesse no futebol masculino, iam ser investidos milhões na investigação e que agora no feminino não tem sido feito dessa forma achas que tem a ver com essa falta de investimento e de pesquisa.
A verdade é que essa disparidade de investimentos é relativamente fácil de explicar. Uma atleta do Chelsea que tem uma lesão do cruzado gasta 50 mil euros por mês durante 10 meses. Se for um jogador masculino, gasta 3 milhões e meio por mês.
Concordo objetivamente que, do ponto de vista pragmático, a saúde das mulheres é tão válida tão legítima como a saúde dos homens, mas muitas das vezes esta diferença de investimento na investigação e na procura de soluções é modificada por estes aspectos. Não tenho opinião sobre se isto, se é bom ou mau, isto provavelmente acontece.
Tem se falando muito sobre a questão do relvado sintético no futebol. Os comentadores têm falado muito sobre o aumento de chances de lesões. A literatura da medicina desportiva fala sobre isso? Há evidências de que isso acontece? Quais seriam os motivos?
R: Onde é que a maioria dos clubes ia praticar futebol? A manutenção do relvado natural é muito mais cara e muito mais frequente do que um gramado sintético. Quais clubes tem condições de manter o relvado natural em Portugal?
E no Brasil? Pensamos que os 40 escudos das primeiras duas divisões nacionais consigam manter esse tipo de estrutura. Quantos clubes tem o Brasil? 800? Isto dá 2%. Vamos dizer que os 98% que sobram nesta conta, vão jogar onde? Qual é a alternativa?
É factualmente que o relvado sintético está associado a mais lesões articulares do que os naturais, em condições de sobreuso, excesso de jogos, também tem perigo aumentado. Por outro lado, não tem evidências no caso dos problemas musculares.
Ou seja, o sintético está associado em certas lesões, sim, mas temos que ponderar se o aumento dessas lesões é comparável com o investimento associado a ter um relvado natural. São muitas questões e é muito complexo. Não é simplesmente dizer sim ou não a este tipo de relvado.